25/07/2014

Outros tempos

Título "Puxando Lata III",
de Ivan Cruz
Nos tempos de infância, a lata antiga do Leite Ninho me causava certo fascínio. Aquele desenho dos pássaros confortavelmente instalados dentro de um ninho, sendo alimentados pela mãe, aos meus olhos era algo de um beleza poética indescritível. Hoje sei que tudo não passava de um mero logotipo, uma marca que identificava uma empresa. Mas, na minha visão de então, era bem mais que isso. Achava aquilo tudo muito mágico.
Gostava tanto que, de vez em quando, assaltava a latinha amarela. Obviamente de modo furtivo, longe e acoberto das vistas de minha mãe, é claro. Sorrateiramente, temendo ser pego em flagrante, surrupiava a lata, abria sua tampa evitando qualquer barulho e, finalmente, do seu interior emergia uma colher cheia de leite em pó que era solenemente levada à boca. Os farelinhos grudavam no céu da boca. E o sabor lentamente ia se espalhando.

23/07/2014

Os índios

Reprodução da pintura 
de Maximilian Philip – séc. XIX
No final da Rua Costa Gama havia o Barcelar. Era um armazém no estilo antigo. Tinha de tudo um pouco. Querosene Jacaré, farinha, arroz, feijão, uma mesa de mini snooker e uma tevê no alto. Acho que aquela foi a primeira tevê que assisti. Era final dos anos 60 ou começo dos anos 70, não lembro bem. No ringue dois lutadores fantasiados se agarravam de maneira intrigante no meio de rabiscos e chuviscos em branco e preto. Davam golpes improváveis. Um era do bem, outro do mal. Os homens, enquanto bebericavam uma mistura de cachaça com bíter ou coisa que o valha, denunciavam aos berros a deslealdade do maldoso mascarado. Era lutinha de mentira. Uma encenação. Mas, havia quem levasse tudo aquilo a sério. Do alto dos meus nove ou dez anos não acreditava naquilo tudo. O melhor era o intervalo comercial: “Seu Cabral ia navegando/quando alguém logo foi gritando: Terra à vista/Foi descoberto o Brasil/A turma gritava: bem vindo seu Cabral...”

09/07/2014

A pescaria

O fedor de podre era muito forte na vila. Nos dias de vento, então, era quase insuportável. Chegava a arder o nariz. Vinha do matadouro. Era assim que o pessoal chamava o frigorífico, que abastecia a cidade com carne bovina. Os moradores da vila, famílias pobres com muitas bocas a alimentar, ali o que mais adquiriam era alguma carne de segunda com muita gordura, coalheiras, tripas, fígados e rins. Diziam que o cheiro vinha do sangue e dos restos dos animais mortos.
Atrás do fétido matadouro, no entanto, havia um vasto mundo inexplorado. Os olhos da molecada brilhavam pensando em conquistar aquele território. Um belo campo com açudes de águas cristalinas. Diziam que ali havia peixes graúdos às toneladas.
E foi para este lugar que saímos. Eu o Sérgio, meu irmão, nos aventuramos numa pescaria de final de tarde de primavera. Ao passar pela cerca que separava os dois mundos, fomos alertados por um funcionário do matadouro: muito cuidado com os bois brabos que estão no fundo da área! Ficamos apreensivos, mas não havia como abortar a missão. Os caniços estavam prontos e as minhocas aguardavam numa velha lata de leite ninho, previdentemente cobertas por um punhado de areia úmida.

O banquete

Lá vou eu de novo contar histórias do século passado. Mais precisamente dos anos 70. Não sei precisar o ano. Mas, acho que era 1974. Tinha onze anos de idade. Estudava numa escola particular da cidade, o Colégio Conceição. Vindo de uma família muito pobre, não tinha dinheiro para a mensalidade. Na realidade, nem para o material obrigatório tinha. Foi graças a uma bolsa de estudos concedida pelo Deputado Romildo Bolzan que acabei por ali. Não havia como negar que era um intruso naquele ninho. Com exceção de dois ou três bolsistas, todos os demais colegas faziam parte das mais tradicionais famílias da cidade.
Mesmo que os colegas fossem extremamente gentis, não nego que sentia na pele as diferenças causadas pelo abismo econômico que nos separava. O desnível aparecia especialmente na hora do lanche. Tão logo soava o sinal de intervalo, meus colegas partiam como carros de corrida em direção ao barzinho da Tia Ana. Ali se fartavam com prensados acompanhados de Pepsi (a Coca não mandava ainda neste chão). Em regra, eu e mais um e outro, ficávamos na sala de aula mexendo nos cadernos e livros, como se alunos aplicados fôssemos, disfarçando uma falta de grana que impedia de matar a fome naquele instante. Vez por outra minha previdente mãe forçava que levasse na pasta uma banana ou um pedaço de pão caseiro com margarina. Confesso que tinha vergonha quando chegava a hora do recreio e me obrigava a abrir a bolsa e de lá tirar aquelas iguarias tão diferentes das dos meus colegas. Coisa de guri!

02/07/2014

Não pare de sonhar

A placa diz PARE. Colocada num cruzamento de duas vias no interior de Maquiné, o sinal de trânsito recebe um acréscimo. Alguém, com alma de vândalo poeta, grafou em letras pretas: “não pare de sonhar”. Não obstante o flagrante dano ao patrimônio público, o alerta ou desabafo de um desconhecido pode ser um conselho extremamente válido nos dias de hoje.
Enquanto a cidade descansa: a menina sonha. No dia seguinte encontrará aquele que a fará feliz. Será por acaso. Caminhando num dia chuvoso, feio, baterá de frente com seu guarda-chuva no rapaz. Quase o derruba na calçada molhada. Ele sorrirá como um príncipe. Ela, estabanada, não conseguirá falar. Não sabe se dá atenção ao guarda-chuva que caiu, ao seu celular que se estatelou no chão ou ao rapaz. Murmurará um desculpe-me que não sairá de sua boca. Ele continuará a sorrir. E depois seguirá seu caminho. A menina, por sua vez, lamentará não ter falado, não ter explicado, não ter trocado o número de telefone. No fundo, sonha que o verá de novo.