24/02/2015

Menino Feliz

O palmito é resistente, mas, ao mesmo tempo, é leve. Cede a uma mordida dos dentes de Leonel. O milho é doce. O pepino, que não gosta muito, até que faz um bom papel. A maionese dá o tom cremoso. E o pão é leve. Um pedaço de torta fria é o que lhe restou. Morde um naco e de sua boca sai um som estranho. Sua filha mais nova, se ali estivesse, reclamaria do som da resistência do palmito. Coisa feia mesmo. Mas, ninguém notou. Ou, se notou, não deu grande importância.
É sábado pela manhã. Leonel escolheu sentar numa das mesas do fundo. Pela porta vê centenas de pessoas que passam e não enxergam quem está dentro. “Por uns minutos me tornei invisível. Não fossem os olhos de um ou outro que tomam seu café ou água mineral, além das moças que atendem com dedicação e zelo, poderia estar nu. Do lado de fora ninguém notaria”, pensa. Ri da idiotia que o assola, enquanto nota que a taça de café com leite e a porção de torta fria vão sendo consumidas sem que perceba. Parece que evaporam da sua frente.

16/02/2015

Olívia Palito

Olívia Palito, personagem criado por
Elzie Crisler Segar, em 1919
As meninas magrinhas eram chamadas de Olívia Palito. As muito altas eram garças, girafas, coqueiro ou outra coisa que o valha. Os meninos com óculos eram invariavelmente denominados de Quatro Olhos. Se os óculos compensavam muitos graus de deficiência era comum serem chamados de fundo de garrafa. Os gordinhos eram Baleia Fora D´água. Os baixinhos eram anões de jardim, tampinha e outras denominações de estilo.
E tudo isso era muito normal, naquela época. Normal entre aspas. É claro que para quem não fazia parte do grupo da magreza, dos míopes e dos que lutavam contra a balança, a situação era uma. As olívias, as garças, girafas ou coqueiros, os quatro olhos, os tampinhas e os baleias não achavam tanta graça assim no tratamento jocoso. Não era mau humor não. Ocorre que sentiam na pele a dor de ser apontado por alguma característica sobre a qual não tinham qualquer possibilidade de mudança. Sofriam porque contrariavam o padrão estabelecido pelos outros de forma autoritária e despida de qualquer possibilidade de defesa.

11/02/2015

O sentimento que te anima

“Importa o sentimento que te anima”, foi a última frase que Leonel ouviu. Abriu os olhos, com resistente preguiça. O sol não aparecia com decisão. Nem os pássaros cantavam. Decerto descansavam ainda. Mesmo assim, conseguia ver a silhueta ao seu lado. Admirou as suas costas nuas. A escuridão, no entanto, impedia que visse sua nuca, seus cabelos e a pintinha escura nas costas. Dormiu mais dez, quinze, vinte ou trinta minutos, não sabia precisar.
Foi despertado por um rebelde raio de sol que teimosamente entrava por uma pequena fresta da janela. Ouviu ao longe o som das ondas. O mar está próximo. Levantou da cama. O quarto estava desarrumado. Um copo com um pouco de água no criado-mudo, travesseiro no chão. Uma camiseta jogada de qualquer jeito numa cadeira. Um carregador de telefone celular ligado na tomada sem o aparelho. Desperdício de energia, pensou. Mal lavou o rosto. Fez um rápido bochecho para tirar o hálito da noite. Vestiu uma bermuda surrada. Saiu do quarto.

03/02/2015

Picolés e sorvetes

Um dia acreditei que todos os pedreiros, ajudantes de obras e serventes de pedreiros mereciam um estágio prolongado no inferno. Não era maldade. Na verdade, tinha razões muito bem fundamentadas para chegar a esta conclusão. Era um rapaz de uns onze ou doze anos de idade. No final do mês de novembro, o sol começava a se mostrar cada vez mais presente, os cadernos e lápis já faziam parte do passado, então era tempo de se dirigir até a fábrica de picolés e sorvetes Milk Mony, do Seu Leopoldo. Ficava ali perto da Escola General Osório.