24/04/2015

O Divino Gol

O artilheiro gira com rapidez, engana o zagueiro e desfere um chute perfeito. A bola descreve uma curva, sobe e desce dentro do gol. O goleiro assiste a tudo. Nem tempo teve para esboçar alguma reação. Ficou pregado no chão. O treinador balança a cabeça. Se persistir assim será mais uma derrota. A quinta seguida. E seu emprego está ameaçado. Importa reagir. O clima fica pesado. A torcida  na arquibancada logo logo vai pedir sua cabeça. Ela quer a vitória. Ele também. Só a vitória interessa, sempre.
O artilheiro fecha os olhos e corre em direção à sua torcida. Levanta as mãos para os céus. Humildemente diz que seu gol não foi obra dele. Que não foram sua habilidade, seu treino, sua perspicácia nem seu talento os responsáveis pela bela obra. O gol foi da divindade. E corre gritando para as câmeras de tevê: “não fui eu, não fui eu, não fui eu!”. O grito da torcida abafa sua voz.

17/04/2015

Notícias da Capital

 
Aspecto da área central de Osório (1979).
Foto de Carlos Adib
A Ivete morava na Costa Gama. Era nossa amiga a Ivete. Conversávamos pouco, é verdade. Um oi aqui outro ali. A casa dela ficava no nosso trecho. Afundávamos a Costa Gama durante o dia. Íamos em direção a 15 de Novembro e no rumo da Escola Polivalente. Sempre um grupinho de três ou quatro. Conhecíamos a paisagem de cor e salteado. Qualquer mudança no panorama chamaria a nossa atenção. 
Um dia, talvez num final de tarde de verão, a Ivete estava na frenta da casa. Sentada no muro como sempre. Como sempre não, ela não estava só. E, de modo interesseiro, nos aproximamos com mais fervor que antes. E conversamos mais demoradamente com a Ivete. E ela apresentou sua prima. Ela vinha da Capital, o que aumentava o nosso interesse. Gente do interior admira quem vem da Capital. É como se fosse um estrangeiro. Na visão da gurizada daquela época, quem vinha da Capital sabia mais das coisas da vida. Vivia experiências diferentes. Enfim, quem vinha da Capital tinha o nosso respeito.

14/04/2015

O Mar de Galeano

Eduardo Galeano partiu nesta semana. O escritor uruguaio fará falta por aqui. Seu texto preciso, enxuto e certeiro, suas histórias de gente simples em momentos singelos e de rara beleza farão muita falta. Sua visão de mundo, tão particular, tão poética, capaz de captar o belo, a tristeza, a melancolia e a alegria em cenas triviais, por certo não será esquecida tão facilmente.
Lendo Galeano vez por outra me questiono: afinal, como pode enxergar o que enxerga de modo tão diferente? Como meus olhos não conseguem captar o que ele capta? Claro, cada um de nós vê o mundo não somente com os olhos. As imagens vão se misturando com os cheiros, sabores, sensações, sentimentos e instintos que são nossos, que foram granjeados ao longo de nossa caminhada. Toda esta mistura vai agindo de modo silencioso. E, a partir disso, vamos montando nosso mundinho. Território próprio e intransferível.

08/04/2015

O Sonhador

Se tem algo que Leonel faz, sem medo, sem dó e com frequência, é sonhar. E, vez por outra, aparece alguém que o acusa de sonhador. Ele não retruca e nem protagoniza grandes defesas. Cala. E sonha novamente.
Porém, apesar da sentença que repetidas vezes se impõe sobre sua cabeça, acredita firmemente que o que conta, no momento, é a imagem que se tem do sonho. Muito frequentemente se vê divagando que se encontrasse pela frente cinquenta arco-íris cinquenta vezes lembraria que existe um pote de ouro na sua base. Não adiantaria teoria científica nem longas pesquisas no Google. Instintivamente pensaria no pote de ouro. Pensaria no sonho, na magia, na lenda. Acreditaria sem pensar. Se racionalizasse, claro, o sonho deixaria de acontecer.

01/04/2015

As estradas

Nos tempos antigos, os locais mais distantes careciam de meios de acesso. As comunicações, por isso mesmo, eram difíceis. O progresso vinha a pé. As notícias envelheciam nas estradas empoeiradas. As visitações eram precárias. O mundo era lento. E o tempo, por isso tudo, transcorria sem tanta pressa.
Aqui, neste cantinho do mundo, que hoje chamamos de Rio Grande, charruas, tapuias, guaranis, kaingang e carijós amassavam com seus pés o mato nascente formando trilhas pelas quais se deslocavam em busca de caça e do sol. Não havia pressa nem pecado no Sul do Equador. Os homens de então viviam por aqui envolvidos nas suas atividades mais básicas. A ordem era viver sem pressa. Não suspeitavam que, na distante Europa, os romanos pavimentavam suas estradas com pedras regulares para que seus cavalos corressem arrastando as bigas por léguas e léguas. Lá havia pressa. O mundo por aqui era mais lento, mais primitivo.