22/03/2016

A Luz

O clima está pesado. Mesmo que seja outono e que o dia esteja ensolarado. O céu azul e com algumas nuvenzinhas. Não faz diferença. O humor não é bom. É como se nuvens pesadas estivessem tomando conta de tudo. Alguns amigos estão nervosos. Com muita raiva mesmo. Vivenciam esta raiva nas redes sociais. O tom é acusatório, mesmo na defesa de bons valores. Sofrem com tudo isso. E querem justiça.
Outros amigos também estão nervosos. Os motivos são os mesmos. Mas, o viés é outro. Desejam justiça. E acusam nas redes sociais uma enorme dor porque tudo é perseguição, tudo é falsidade, tudo é armação. Nada soa verdadeiro. 
Gritam em letras maiúsculas. Postam vídeos acusatórios. Descobrem coisas que podem ou não terem ocorrido.  Mas, não faz diferença se forem verdadeiras ou não. Importa a manchete. Importa o impacto. Importa atingir o outro.
E criam-se heróis, um por semana, um por dia, um por hora, mesmo sem saber se o herói criado deseja mesmo o bem da nação ou se é mais um fanfarrão que vai ser denunciado ali na frente como um salafrário qualquer como tantos outros que algum dia desses recebeu o nobre título de  “este me representa”. 
Jamais poderíamos imaginar, nem aqueles mais criativos, que um recurso no STF viraria assunto de boteco. Que a análise feita por um membro da alta corte sobre a atuação de seus pares viralizasse na rede. Que alguns vizinhos, amigos e familiares, que conviveram por anos, por décadas, em respeitosa desarmonia definitivamente quebrassem pratos por causa de um pronunciamento de algum magistrado nos autos de um processo que poucos têm acesso, mas que todos sabem quase tudo porque seletivamente “tudo” vaza.
E na noite, enquanto uma chuva fina caía sobre a capital, um grupo defendendo a moral, os bons costumes, grita palavras de ordem dentro de um clube de jazz acabando com a paz e com a harmonia. E, não atendendo aos pedidos do garçom, partem e quebram-lhe a cara. E agridem outro que tentava separar a contenda. Quando fica perigoso ouvir um bom jazz é porque a coisa realmente fugiu ao controle. O Brasil está doente. A doença não é a direita nem a esquerda. A doença é a paixão. O sentimento obsessivo, arraigado, a luta radical e a vontade de eliminar o outro.  É o ódio que cega e contagia. E a cegueira é falta de luz. Está faltando luz no país.  
A história, esta senhorinha que vive do passado e conta coisas sobre gente que já foi um dia, vai se deliciar num futuro muito próximo quando as análises serão mais serenas e as paixões não estiverem tão afloradas. E os erros e acertos serão estudados por alunos nem muito interessados. 

O sonho e o Pesadelo

“O sonho acabou”, disse John Lennon, sepultando a esperança de milhares de jovens que viviam momentos de afirmação da cultura do “faça amor não faça guerra”.  Os Beatles, a maior banda do planeta, deu adeus aos holofotes. Os jovens, no entanto, continuaram nas trincheiras com metralhadoras imaginárias lançando rosas, sorrisos, paz e amor. As guerras não cessaram.  As diferenças entre as pessoas não acabaram, mas a mensagem de que o mundo deveria ser mais humano e menos armamentista espalhou-se lentamente. E, sem dúvidas, chegou até os dias de hoje.
Por aqui, basta uma escutada num destes noticiários do rádio ou uma lida nestes sites de notícias para notar que o clima sobre os céus da pátria amada andam mais para pesadelo do que para os doces sonhos do passado. As bandeiras foram recolhidas faz tempo. Os ideais ficaram esquecidos entre as intermináveis discussões das reformas política e fiscal (que nunca saíram do papel), dos acordos de governabilidade, dos controles orçamentários, das metas de crescimento e outros artigos tão subjetivos e tão distantes do homem comum, mais acostumados com os esquemas táticos dos times de futebol, com os roteiros novelísticos e com as facilidades dos crediários das lojas populares.
E não há muito que reclamar. O tempo dos sonhos vai ficando para trás. Algumas boas ideias foram colocadas em prática e se mostraram altamente funcionais. Outras em tanto. A realidade mudou. E mudará muito mais ainda. Certo é que a esquerda brasileira teve tudo nas mãos: aceitação popular, alguma tolerância da mídia (certamente regada pelos milhões aplicados em forma de publicidade oficial), competência na manutenção de fórmulas que mantinham o mercado aquecido, controle inflacionário e acesso ao ensino superior facilitado. Além de outras iniciativas contidas nos programas de incentivo ao desenvolvimento do indivíduo (que causam desconforto na nobre direita brasileira e na classe média, que almeja ser rica e não quer ver o  pobrerio por perto).
Certo é que tudo ficou muito parecido no submundo político. Esquerda, direita e centro finalmente entraram em acordo. Não para governar, mas para enriquecer.  Imagino que alguns dos envolvidos nestes fortes esquemas de lavagem de dinheiro, de exploração de prestígio e achaque aos cofres públicos ainda se reúnam com suas famílias para um churrasco de domingo. E as mães, zelosas, preocupadas com a reputação de seus rebentos, ainda façam fortes cobranças em relação às manchetes que alardeiam que este ou aquele sujou as mãos na lama da corrupção. “Mas, é assim que funciona no Brasil. Se eu não faço, outro faz. Todo o mundo age assim!”. Do alto de sua autoridade materna não precisa grande esforço para ouvir a sentença que toda a mãe dá nestas horas.  Robusta, certa, inafastável e imodificável: “Mas, você meu filho, não é todo o mundo!”.
Quem vende sonhos não pode apresentar as mãos sujas. Simples assim.  

08/03/2016

DNA

Contam que carregamos no DNA a série de experiências vividas num passado muito distante. Contam mais: que estivemos nas cavernas onde nos abrigamos do vento cortante e do frio implacável. E nas noites mais longas, aquelas em que a negritude tomava conta de tudo colocando uma venda nos nossos olhos, um de nós tomava nas calejadas mãos uma flauta e assoprando com jeito ia desfazendo o pretume, afastando as feras que por porventura estivessem por perto de tocaia. No centro, uma fogueira ardia e espalhava luz e calor.
Quando o sol aparecia e impunha a luz sobre a escuridão, todos saíam da caverna e seguiam na busca de alimentos. Era preciso manter os corpos vivos e fortes. A água era cristalina. E o ar era puro. E a luta era grande. Carente de defesa, restavam músculos, pedras e paus para lutar contra os predadores. E a luta era árdua. A vitória era incerta. A morte era uma constante. Dia morria a fera, dia morria um de nós.
O dia passava como tudo passa. O sol se punha e a tribo se escondia novamente. Era a hora em que os homens ficavam menores e as feras cresciam. Sobrevinha mais uma noite. E no abrigo da caverna, enquanto o fogo ardia, um tambor concebido a partir do couro de um animal abatido, que contrariado doara sua carne para manter o grupo em pé, fazia companhia à flauta. A chama da fogueira parecia uma bailarina. Graciosamente, mas com decisão, seguia o ritmo da primitiva canção. E os corações somavam-se ao tambor e a flauta, doce e profunda, parecia querer levar os espíritos para cima. E os levava.  E adormeciam nas alturas, longe do cansaço e das dores das lutas.
E assim, contam que começamos uma grande caminhada. E as cavernas ficaram no passado. E o medo das feras tampouco resistiu até aqui. E as chamas das fogueiras nem dançam mais ao som do tambor e da flauta. E os espíritos nem sobem tanto. Ficam por aqui grudados na terra.
E as feras? Contam que elas não sumiram assim num passe de mágica. Consta que um dia entraram na caverna. E sem serem percebidas, se hospedaram dentro do homem. E ganharam nome de medo, de arrogância e de prepotência. E, pelo que dizem, vão sorrateiramente agindo. Vez por outra aparecem na forma de dores no corpo, de cansaço da mente, de falta de energia, de falta de coragem, de confiança e de fé.
Mas, podem, segundo indicam alguns especialistas, se manifestarem na forma de uma linguagem violenta, em grunhidos e rugidos bem definidos. Ou, ainda, nos comentários raivosos em público ou dissimulados numa rede social qualquer.