O
futebol era nosso vício. Os jogos eram intermináveis. Não
adiantava nossa mãe lembrar que devíamos esperar o almoço descer
sob pena de sofrermos uma congestão. Qual nada! Os pratos ainda
estavam na pia e nós já dividíamos os times. Bastava uma bola
velha e a gurizada gastava tardes inteiras com intervalos resumidos
para um gole de água ou um furtivo café preto com bolinho frito.
Camisetas
velhas, puídas, furadas. Calçõezinhos no mesmo estado. Os pés
descalços. Porém, disposição interminável para enfrentar uma
maratona que só encerrava quando o pretume da noite tomava conta,
escondendo as goleiras improvisadas e engolindo a bola de nossas
vistas.
O
campo era bom. A grama era farta. E fofa. O campinho era um terreno
ao lado da casa de uma senhora idosa que curiosamente era chamada de
Dona Guria. O local era baixo e nos dias de chuva nossa grama sumia
sob um véu de água. Levava dias para que pudéssemos retomar às
atividades normais. Ao lado do campo, uma floresta de maricás e
mamoneiros. Vez por outra, nossos pés sofriam com a ação dos
aterrorizantes espinhos de maricá, especialmente quando a bola
precisava ser buscada no meio do arvoredo.
Os
times contavam com três jogadores na linha e um goleiro. Normalmente
os goleiros eram os mais velhos da turma. Nos sábados à tarde era
comum a realização de torneios. Juntavam-se meia dúzia de meninos
e a competição seguia enquanto as vistas enxergassem a bola. Não
havia finalíssima. Em regra não havia medalha e nem troféu para os
campeões. O suor e o cansaço, um que outro gol feito, um que outro
salvo, uma peripécia qualquer era o troféu que levávamos para
casa.
Todos
éramos campeões. Mesmo aqueles que perdiam.
Um
dos times de melhor campanha era o que formamos: eu, meu irmão
Sérgio e o Pirão. No gol, o Mário ou, em seu impedimento, alguém
arrebanhado de última hora. Nosso adversário mais corriqueiro era o
time formado pelo Orildo, seu irmão Carlinhos, o Betinho ou o Luís
Peito de Aço. O Marino, se minha memória não me trai, de vez em
quando jogava também. Jogos feios, de muita dedicação, de muita
vontade, muita força e alguns raros lampejos de qualidade.
Todos
eram finais de Copa do Mundo. Não havia amistoso, jogo-treino ou
frescuras que tais. Quando a bola rolava, sem juiz, sem coordenação
externa qualquer, o sangue fervia de tal forma que cada falta era
discutida até as últimas consequências. Evidentemente que, em
alguns momentos, o tempo enfeiava. “Foi falta”, gritava
energicamente um time. “Não foi”, respondia com a mesma decisão
e fervor a outra equipe. Quando a coisa chegava no extremo, parava-se
o jogo e iniciavam as rodadas de negociações. Até que alguém
cedesse e se chegasse a um acordo.
Se
não houvesse acordo? Bem, aí o que restava era o time que se achava
prejudicado deixar o campo, abandonando a disputa. Era importante
deixar bem claro que o time saia do jogo não por medo do adversário,
mas sim porque não concordava com tamanha injustiça.
Às vezes, um adulto que se encontrava na redondeza fazia o papel de
conciliador. Acalmava os ânimos e mandava a gurizada retomar a
partida. O Seu Adegildo, pai do Betinho, em muitos momentos apaziguou
os ânimos. Ele tinha um poder enorme sobre os meninos. Seu filho era
o dono da bola. Se a encrenca fosse muito grande, Seu Adegildo
mandava o Betinho pra casa. Acabava o jogo. Terminava a confusão.
“Prometem
que vão jogar direitinho?”, perguntava depois de dar um discurso
sobre o valor da amizade. Com medo de ter o jogo abortado,
confirmávamos sacudindo a cabeça sem nem ao menos encarar o sábio
veterano.
A
partida recomeçava e seguia por um bom tempo. Até que uma nova
falta duvidosa ou um gol irregular voltasse a tirar todos do sério
novamente.
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