Uma borboleta surgiu no
meio da cidade grande. Talvez tenha cruzado por um milhão de pessoas
que a ignoraram. Uma delas, no entanto, deixou seus afazeres e
dedicou parte do seu tempo a seguir o voo solitário. Disfarçadamente
fez que não viu um conhecido. Não desejava perder de vista a
pequena intrusa. Nem queria ser confundido com um louco, um debiloide
qualquer que no meio da tarde quente anda por aí,
irresponsavelmente, correndo atrás de borboletas pela rua. Isto,
convenhamos, seria um atentado à reputação de qualquer um.
As desventuras do velho
cronista seguindo uma simplória borboleta foi tema de uma crônica
de jornal, de autoria do insuspeito Rubem Braga. Os leitores, com
certa ansiedade, acompanharam durante três dias o surgimento, a
trajetória e o sumiço da borboleta, que se perdeu das vistas de seu
acompanhante sem deixar qualquer sinal, misturando-se aos prédios,
árvores, carros e ônibus.
Não é por acaso que
Braga é tido como um dos melhores, senão o melhor cronista
brasileiro de todos os tempos. Que talento extraordinário e
admirável esse que apresentam alguns poucos indivíduos de olhar
para o quase nada e dali extrair um néctar encantador. Que percepção
profunda e que audácia em expor coisas tão cotidianas e, ao mesmo
tempo inusitadas e belas, que nas mãos pouco hábeis de outros se
transformariam em um amontoado de palavras desconexas.
De onde surgem estas
ideias que os criativos recolhem, digerem e devolvem em forma de
prosa e de verso? Infindável mistério da natureza este da origem do
pensamento. Alguém cético, despreocupado e de pouca fé, que busca
afastar do centro das atenções o mistério, há de dizer que as
ideias surgem do nada. No entanto, sabemos que o nada é estéril.
Ele não dá frutos. Daí certamente nada sai.
Seguindo a trilha do
antigo mestre Braga, imagino que as ideias são como as borboletas.
Elas estão aí. Passam na frente dos nossos desatentos olhos,
passeiam sobre nossas cabeças, se refestelam dançando
harmonicamente. Alguns captam suas presenças. E aí investem algum
precioso tempo em segui-las. Outros até as percebem, mas têm coisas
mais urgentes a fazer. Têm contas a pagar e a agência bancária já
está fechando. Desconhecem o pagamento direto no caixa eletrônico e
é preciso correr. E as borboletas seguem porque a vida não pode
parar. E sempre haverá algum desavisado e interessado que gastará
míseros segundos ou parcos minutos em seguir o seu voo.
Não por acaso, assisti
a um vídeo em que o violeiro, cantor e compositor goiano Almir Satter
explica como surgiu a música Tocando em Frente, uma das mais belas
peças produzidas neste país. Disse que ele e Renato Teixeira
aguardavam enquanto a esposa de Teixeira preparava uma refeição.
Nisso, usando um violão com uma corda a menos, Satter começa a
dedilhar uma canção. Teixeira, mais do que depressa, pega um papel
e uma caneta e, magicamente, como se estivesse em transe concebe a
letra. Questão de um ou dois minutos e a obra está pronta e
acabada. Letra e música.
Mostraram para os
familiares, sempre suspeitos, e todos entendiam que ali estava uma
obra-prima. Dias depois, Satter recebe um telefonema de Maria
Bethânia, que não o conhecia pessoalmente nem tinha intimidade. E
ela pede uma canção para o novo disco. O músico, ainda relutante,
canta a música pelo telefone. A baiana emocionada diz na hora: “essa
música é minha!”. E grava e encanta, como só ela sabe encantar.
Almir Satter,
explicando o surgimento da música, disse que a canção foi um
presente que ele e Renato Teixeira receberam. E mesmo o calejado
artista, autor de inúmeras canções de sucesso, sabe que a
inspiração veio de longe, não sabe bem de onde. Acredita que
tenham recebido alguma ajuda. Crê que a obra tenha surgido através
da psicografia.
As borboletas estão
por aí. Voam livres. Surgem e desaparecem como se achassem graça da
nossa cegueira.
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