A vila era pequena. Uma única rua de cascalho atravessava toda a extensão. Outras pequenas ruelas iam cortando a rua principal. As casas eram germinadas. As paredes finas. Os moradores ficavam muito próximos uns dos outros. A proximidade era tanta que se ouviam os barulhos dos talheres na hora do almoço ou da janta da casa ao lado. Falar alto era regra por ali. Desta forma, mesmo as conversas mais íntimas se tornavam públicas. Os arroubos noturnos dos amantes podiam ser acompanhados pelos vizinhos sempre atentos às novidades locais.
Neste meio, o Alemão era um mito. Muito embora não aparecesse por ali, sua numerosa família contava maravilhas sobre sua valentia, sua astúcia e inteligência. Diziam que era alto, loiro, de olhos claros e corpo atlético. Dono de uma perspicácia invulgar e de uma sabedoria ímpar. Era uma fera. Uma besta indomada. Ninguém podia com ele. Contava seu irmão mais movo, com sincero orgulho nos olhos, nos gestos e na voz, que certa vez Alemão teria protagonizado uma ação das mais épicas que a região conheceu. Teria interferido em favor de um amigo e lutado com cinco, seis ou dez policiais militares. Foram todos derrotados pela sua força e sua destreza.
Contava-se mais. Conforme outro irmão, Alemão era exímio atirador. Nas entediadas noites de verão, costumava sair pelas rodovias da região. Não podia ver uma placa indicativa na beira da estrada. Sacava o revólver que sempre o acompanhava e, com o carro em movimento, sem ao menos pedir para que a velocidade fosse reduzida, disparava dois, três, quatro tiros certeiros deixando uma marca central nos zeros ou nos ós que ali se encontravam. Na falta de ambos, a letra c era a sacrificada. Contava também, com orgulho, que não havia placa entre Osório e Mostardas, entre Santo Antônio e Torres que não tivesse a assinatura de Alemão. A gurizada, que mal saia da vila quanto mais percorrer a vasta região em busca de provas, não via outra alternativa a não ser aceitar o fato sem nenhuma contestação.
Um dia a vila foi acordada pelo choro e pela lamúria que vinha da casa dos familiares de Alemão. Não demorou muito para que a vizinhança ficasse sabendo que o destemido homem havia tombado. Alemão estava morto. Ninguém sabia ao certo o que houve, mas em dado momento um dos irmãos se encarregou de dizer para a gurizada que Alemão tinha sofrido uma tocaia. Numa briga qualquer recebeu uma série de tiros contra seu corpo. Pura covardia. Não tivera nem uma possibilidade de defesa. “Morreu lutando”, completou o irmão.
Toda a história sempre me soou estranha. Muito estranha. Muitas décadas se passaram. A vila ainda está lá. Os moradores nem são mais os mesmos. Sobraram duas ou três famílias. Os outros partiram ou morreram. Os meninos de então são senhores grisalhos. E os poucos detalhes que eram divulgados pelos familiares do destemido rapaz, que alimentavam o mito, vão se perdendo cada vez mais. Apesar disso, mesmo sem saber se Alemão era mocinho ou bandido, quando ando pelas estradas noto que algumas poucas placas de sinalização ostentam marcas de tiro. Sinal de que o esporte não é tão raro assim. Chama a atenção, no entanto, que os zeros e os ós permanecem intocáveis.
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