18/11/2021

As Filosofias de Vida

Não é por ausência de filosofias que a humanidade está batendo cabeça há tanto tempo. Claro, para que a coisa fique bem explicada, importante separar a filosofia da religião. Enquanto na filosofia busca-se o conhecimento para a libertação do homem criativo, em vários aspectos a prática religiosa busca o contrário: a supressão da criatividade humana tendo em vista que há alguém maior, que deve ser temido, pois é O Criador e controlador de tudo e de todos. Por isso, em várias culturas a divindade é o que importa. O homem que siga seu caminho tortuoso, imerso em seus lamaçais de pecados, desacertos, desarmonias e culpas, e, mesmo que se iluda com a possibilidade de apresentar uma boa defesa quando dos julgamentos, deve conviver com a certeza de que as sentenças, em regra, são implacáveis.
Mas, não é necessário ser assim. Senão vejamos: a filosofia budista apresenta o caminho que o homem pode empreender para sair do sofrimento, da vida ilusória e atingir a tranquilidade e a plenitude. Já entre os hunas do Hawaii, apregoa-se que cada um de nós carrega dentro de si um deus dormente que pode ser acordado. Cada indivíduo é responsável pela vida que leva, pelo ontem e pelo seu amanhã. Da mesma forma que constrói sua caminhada, o homem pode mudar sua realidade para criar uma realidade mais desejável a partir de seu poder pessoal.
Na mesma linha, o povo tolteca, que viveu no México, na era pré-colombiana, apresenta também sua filosofia espiritual bem simples e, de algum modo, bem objetiva. Segundo Don Miguel Ruiz, em Os Quatro Compromissos, a visão ancestral tolteca para a liberdade pessoal pode ser resumida em quatro pontos específicos: seja impecável com sua palavra, não leve nada para o lado pessoal, não tire conclusões e dê sempre o melhor de si. Simples assim. Como diria um antigo professor universitário missioneiro: vamos arredondar este tijolo. Ou, pelo menos, tentar.
A palavra- Ela não é tão somente um símbolo escrito ou um som. É, isso sim, uma força, um poder, um dom humano. Dependendo de como é usada pode contribuir para a construção da beleza ou para a destruição das coisas. Não faz muito, um homem, com o poder da palavra, cegou milhares de pessoas e implantou o sonho de conquistar o mundo e eliminar aqueles que não tinham a mesma matiz. A superioridade racial, por incrível que pareça, ainda abastece mentes e vive nos discursos de ódio nas redes sociais. Hitler era um homem só. Virou um exército. Uma lenda. Seu discurso, apesar de derrotado pela força das armas, ainda resiste em pleno século XXI. Às vezes, aparece na boca de pessoas que transitam por aí disfarçados de homens de bem.
Pessoal- Não devemos, segundo a sabedoria tolteca, levar as coisas para o lado pessoal. Se assim fizermos estamos referendando o discurso do outro. O veneno das palavras e ações do outro ganham vida e contaminam o indivíduo. O que o outro fala revela mais ele mesmo do que nós. Então, o melhor é não sofrer pelo que os outros dizem ou pensam.
Conclusões- Não tirar conclusões é difícil. É norma a presunção, o julgamento. Com isso, criam-se verdadeiras confusões com debates mentais intermináveis sobre fatos que, muitas vezes, nem ocorreram. Em vez de conclusões, defendem os toltecas, o questionamento, a pergunta, o diálogo. Prático, não é?
O melhor- Fazer o melhor possível, sempre. Porém, importante saber que o melhor que se dá nem sempre é o que outros esperam ou o que a gente precisa. Quantos de nós vive trabalhando num local por anos a fio sem satisfação e sem prazer? O problema da insatisfação vai gerando um relaxamento (na pior acepção) e o indivíduo deixa de fazer com apreço, com vontade e com determinação sua tarefa. Entrega um resultado pífio. Colhe insatisfação. O ideal é fazer o melhor para buscar o contentamento, a satisfação, o prazer pelo resultado, sem esperar a recompensa, pois esta virá, no momento oportuno. Fazer o melhor que se pode deve ser empregado em tudo. No cuidado da saúde, nos pensamentos, na construção de um caminho de virtudes. Não para agradar ao outro, à divindade ou qualquer ser. O objetivo aqui é a felicidade do ser. É honrar a vida e valorizá-la, respeitando a si e ao outro.
Quer algo melhor que isso? Faça do seu modo. Talvez esse seja o melhor jeito de viver a vida.

 

Os Inimigos da Nação

Dia desses, estava com a mão numa bergamota. Começava a levá-la para dentro de uma embalagem. O rapaz do mercado (Nacional/Big) veio correndo em minha direção. “Ei. O preço tá aumentando”, disse ofegante. Arrancou a plaquinha, bem na frente dos meus olhos, que ostentava R$ 3,55 o quilo e tascou uma um pouco maior com R$ 5,55. “Putz”, pensei. Devolvi o produto aos seus pares. Lembrei de Sarney e de Collor, na hora. Ainda sorri para o funcionário, afinal que culpa tem ele de não passar por um bom treinamento ou de contar com uma chefia que não liga muito para um simples consumidor?

No período da hiperinflação, que durou mais de uma década, entre o final dos anos 70 e o começo da década de 90, um dos grandes inimigos da população brasileira era o funcionário do mercado que tinha a tarefa de remarcar os preços. Naqueles tempos, os produtos tinham o preço afixado através de uma etiqueta. Diferente dos dias de hoje onde os códigos de barras carregam todas as informações, naqueles tempos analógicos as etiquetas se sobrepunham na medida do avanço da inflação. Chegou ao absurdo dos preços variarem diariamente.

Muitos mercados, para evitar o constrangimento, utilizavam o turno da noite para remarcar o preço das mercadorias. Na realidade, nunca se sabia o preço do arroz, do feijão, da farinha antes de entrar no supermercado. O plano econômico do presidente José Sarney congelou os preços e espalhou a ideia de que cada brasileiro deveria fiscalizar os mercados. Instituiu-se a figura do cidadão delator, o “Fiscal do Sanrey”. Um órgão, chamado SUNAB, recebia denúncias sobre aumento de preços e o gerente do mercado era ameaçado de prisão.

Os preços realmente despencaram. Só que as gôndolas acabaram vazias. Os fabricantes pararam de fornecer os produtos e o plano vazou. A boa ideia não vingou. Durante os anos 80, foram inúmeras as tentativas de conter a escalada dos preços, que miravam a Lua. O único sucesso foi em relação aos salários que foram imobilizados através do congelamento.

Plano Cruzado, Plano Cruzado Dois, Plano Bresser-Pereira, Plano Verão, Plano Collor, Plano Collor Dois: em todos houve um recuo inicial dos preços seguido de estratégias de sabotagem e da retomada da escalada inflacionária, logo depois. Isso ocorreu sistematicamente até a chegada do Plano Real, que trouxe uma estabilização econômica, já na década de 90.

As máquinas de etiquetagem foram substituídas pela exposição de preços nas próprias gôndolas. As leis tornaram-se menos rígidas em relação às estratégias de vendas e o inimigo do povo desapareceu.

Nos dias de hoje, por incrível que pareça, algumas cenas daqueles tempos começam a dar as caras. Os preços de alguns produtos tornam a compra um sonho. A carne bovina que o diga. A pandemia bem contribuiu para a mudança dos costumes. Os almoços familiares de domingo foram sendo suprimidos. No começo pela ação do vírus, hoje pelos preços proibitivos da carne bovina. Os espetos de picanha, alcatra e até mesmo de uma boa costela, que ostentavam nos storys e nos feeds do Instagram há alguns meses, deram lugar a prosaicas coxas e sobrecoxas de frango. É a vida, amigos! Como diria uma das Leis de Murphy: “ se algo pode dar errado, dará”.

Não precisa ir muito longe. Faz pouco tempo o quilo de um café razoável estava por volta de R$ 20,00. Hoje está na faixa dos 35 a 40 pilas. A inflação, como um ato de mágica, permanece rasteira, ao menos nas tabelas divulgadas pelos economistas do governo. Os governantes têm disso. Conseguem manter a ilusão por um bom tempo. Outro exemplo é o do azeite. Pulou para o grupo dos sete e pouco, oito reais e gostou dali. Agora nem pensa em descer. Na contrapartida, os salários minguam. As leis que garantiam alguma segurança foram todas mudadas para favorecer a produção e gerar riqueza (para quem, cara pálida?).

Outro viés desse novo momento do país: produtos que até então estavam em franco desaparecimento há décadas voltaram à mesa do brasileiro. Ossos de gado, de porco, de galinha, pelancas e graxas de animais viraram alternativa alimentar nestes novos tempos da Pátria Amada. Raspas de ossos viraram comida. Com a adição de água e sal tudo vira comida. Houve até um ministro que incentivou o consumo de restos de comida dos restaurantes para os pobres. Para alguns, no entanto, o país nunca esteve no caminho tão certo. Como diz outro princípio creditado a Murphy e que, de algum modo, é o motor para a difusão de notícias falsas (fake news): “sempre haverá alguém que vai acreditar”.


 

Os Preços

 

A realidade do dia a dia vivida pelo brasileiro nem sempre é aquela que aparece nos jornais televisivos e nas emissoras de rádios. Principalmente nos órgãos dirigidos por bispos e pastores, notadamente aliados com quem manda no boteco. Para estes, o país nunca esteve tão bem.

A verdadeira face, no entanto, está mais perto do que se imagina. Nos diálogos insuspeitos envolvendo gente simples, despreocupadas em externar opiniões e experiências, muito do que se vive nos atuais dias vem à tona. Sem muitos trejeitos e floreios.

Gente do céu. Não sei como alguém que ganha salário-mínimo, com família, consegue viver nos dias de hoje”, disse a repositora de produtos no supermercado. Conversava com uma colega sua, uma promotora, que revelou, em voz baixa, que escondeu seu carro embaixo de uma lona, pois o preço dos combustíveis está proibitivo. Conversa vai conversa vem, ambas lamentaram que votaram nele. “Uma decepção. Não faz nada para o pobre”. “Olha o preço da carne… Que loucura. Não sei aonde isso vai parar!”.

As duas eleitoras arrependidas encontram-se agora sem esperanças. Não sabem o que fazer. E ano que vem tem eleições novamente. “Fazer o quê? Ninguém vai resolver, mesmo!', diz uma delas enquanto coloca mais produtos na gôndola do mercado.

A cena, vivenciada esta semana, talvez se repita em muitos mercados no país afora. A situação é a mesma. Preços exorbitantes. Inflação comendo os salários de quem ainda tem. Desemprego para dar e vender. Chefia falando abobrinhas, até mesmo mentindo descaradamente em rede nacional. Até os robôs do Facebook e do Instagram, frios como pedras, já chiaram. Aprenderam a indignação. Até para eles foi demais ligar o uso da vacina contra a COVID-19 à possibilidade de contaminação pela AIDS. “Censura”, deve ter gritado alguém, do alto de sua ignorância mitológica, achando que o direito à livre expressão abarca a difusão de informações falsas e de ilações preconceituosas.

E segue o baile. Apavorante silêncio. Resmungos e nada mais. Nem parece que o mesmo país que foi abaixo por causa de 0,20 a mais na passagem de ônibus tempos atrás. O papo está bom, mas, com licença: tenho que passar ali na Farmácia São João, onde só tem gente bonita e magra, “afinal, vamos escolher os bonitos porque o preço é o mesmo”.


O Feitiço do Tempo

 

Acordou com a sensação de que aquele dia já foi vivido uma vez. Não lembrava quando. Porém, foi só abrir os olhos e percebeu que havia algo de estranho. Era um replay.
Os pássaros lá fora cantavam tal e qual outro dia. Emendavam um canto noutro numa algazarra sem fim. O sol jogava um brilho conhecido que passava com facilidade pela janela como outro dia.
Ocorreu que, talvez, estivesse num filme. Lembrou de O Feitiço do Tempo, um clássico dos anos 90. No filme, o ator Bill Murray vive um repórter de televisão que faz previsões de meteorologia e, por obrigação e totalmente contra a vontade, vai a uma pequena cidade interiorana dos EUA para fazer uma matéria especial sobre o celebrado "Dia da marmota". Contrariado, pretendia ir embora o mais rapidamente possível, mas, para seu desespero, inexplicavelmente fica preso no tempo, condenado a vivenciar para sempre os eventos daquele dia.
Fez um café do mesmo jeito que fazia sempre. Serviu na mesma xícara de sempre. o açúcar estava no fim. "Estava na unha" como diria sua mãe, que há tempos havia partido. O pão era de ontem.
Abriu um site e lá estava: anúncio de novo aumento dos preços dos combustíveis. Governo reduz investimentos na educação. Presidente faz gracejos com coisa séria. Artista é perseguido porque critica o governo.
Bobagem, pensou. Não era repórter nem nada. Vivia no Brasil, terra do samba, da alegria e de dar um jeito sempre que necessário for. Não tinha mais dúvidas. Já havia visto tudo aquilo. Era uma reprise. Parecia que tinha retomado o último capítulo de uma daquelas séries que demoram a entregar a nova temporada e exige que os últimos atos sejam revistos sob pena de não compreender o novo enredo.
O gosto era de repetição. Não havia nada de novo. Coisas conhecidas atrás de coisas conhecidas. Até o vizinho ligava o som na mesma música.
O caminhão do lixo passou. Os garis corriam no meio ritmo. Os cães reagiam como se tudo o que foi descartado ainda tivesse dono. Como se o resto fosse precioso demais para ser levado e jogado no caminhão.
O WhatsApp estava fora do ar. Estático. Paradão. Sonolento. Estranhou que, ao ligar o celular, o aplicativo não tivesse disparado como sempre ocorria. Os grupos estavam silenciosos como nunca. Nem preces, nem gratidão, nem uma nova defesa das ações governamentais, nem os enroscos familiares. Restava o silêncio. Parecia outro dia. Um outro dia qualquer desses que não deixam saudades.
Esperava por um sinal que esclarecesse se estava no sonho já sonhado ou se a coincidência era tamanha que tudo tinha gosto de algo manjado.
Talvez não fosse necessário chegar à meia-noite para ver o que o calendário diria. Talvez antes disso algo novo, alguma coisa inédita fosse vista, dita ou sentida. Por enquanto, restava o gosto de um feitiço do tempo.