Um dia
acreditei que todos os pedreiros, ajudantes de obras e serventes de
pedreiros mereciam um estágio prolongado no inferno. Não era
maldade. Na verdade, tinha razões muito bem fundamentadas para
chegar a esta conclusão. Era um rapaz de uns onze ou doze anos de
idade. No final do mês de novembro, o sol começava a se mostrar
cada vez mais presente, os cadernos e lápis já faziam parte do
passado, então era tempo de se dirigir até a fábrica de picolés e
sorvetes Milk Mony, do Seu Leopoldo. Ficava ali perto da Escola
General Osório.
Antes,
porém, tinha que conseguir uma Carteira da Saúde. De posse do
documento, poderia transitar livremente pelas ruas da cidade, sob um
sol escaldante, tentando vender picolés e sorvetes. Ostentava um
surrado guarda-pó branco com dois bolsos. Num deles ia depositando o
dinheiro da venda. No outro a carteira da saúde. Seu Leopoldo, no
entanto, era todo cerimonioso. Primeiro realizava alguns testes para
saber se o menino desempenhava com alguma competência a arte da
venda. No primeiro dia, abastecia uma caixinha de isopor com uma
dezena de picolés de suco. O desafio era percorrer a Praça da
Matriz e vender o maior número possível, antes que os picolés
derretessem.
Se o
garoto desse conta do recado, se garantia no nobre cargo. Era
promovido. Ganhava uma caixa com gelo seco. Aí era uma
tranquilidade, eis que os picolés duravam muito mais tempo. Evitava
as correrias até a fábrica para trocar os picolés quase
descongelados por outros mais tenros. Uma ou duas semanas com a
caixinha e, se aprovado o vendedor, passava para o carrinho. O
carrinho recebia placas metálicas com água no interior. Como ficava
a noite toda no freezer a água congelava e garantia picolés e
sorvetes íntegros o dia todo.
Os
meninos mais velhos vendiam bem mais. Alguns tinham o privilégio de
vender em pontos fixos. Os que ficavam na rodoviária terminavam o
dia com uma cifra de mais de 200 picolés vendidos, ganhavam uma boa
comissão e eram alvo da inveja de todos os outros. No final do dia,
na hora do acerto de contas, Seu Leopoldo pagava as comissões,
distribuía alguns elogios e palavras de incentivo. Os melhores
vendedores ganhavam potes de sorvete. Os pequenos tinham como prêmio
de consolação picolés retorcidos que haviam descongelado e
voltavam para o freezer.
Quando
chovia, não havia venda. Era dia perdido. Por isso, acordávamos
cedo e tentávamos adivinhar o comportamento do tempo. Se a cara não
estivesse boa, voltávamos para a cama. Porém, havia dias em que o
engano era grande. As nuvens pesadas sumiam no meio da manhã. O sol
aparecia com decisão. O calor tomava conta da cidade. Aqueles que
haviam arriscado e se apresentavam na fábrica, saíam com os
carrinhos. Os retardatários eram punidos com as caixinhas de isopor.
Entre
os compradores, os trabalhadores da construção civil eram vistos
com desconfiança pelos pequenos vendedores. Duas artimanhas eram
comuns. Primeiro perguntavam quais os sabores estavam disponíveis.
“De fruta tem abacaxi, laranja, limão, maracujá, tangerina e uva.
Cremoso tem de coco, ovos, nata, chocolate, morango e creme
holandês”. Dito isso, começavam a caçoar pedindo sabores que nem
existiam naqueles tempos como pitanga, goiaba, manga e ameixa. Não
dá pra negar que a vontade que sentia era a de mandar o comprador
para o inferno.
Outra
prática comum era cercar o carrinho e começar a pedir picolés.
Três, quatro, cinco, seis pessoas ao mesmo tempo. Depois, enrolar de
tal forma que o pobre vendedor se perdia nas contas. Alguém ficava
no lucro. E este alguém normalmente era um marmanjo da obra que saía
rindo por ter levado vantagem sobre um menino que se atrapalhava na
matemática.
Não
dava tempo para entrar em depressão. O dia era longo e o trajeto
também. O negócio era recolher o prejuízo, engolir o possível
choro e a vergonha de ter sido enganado, fechar o carrinho e sair
gritando “Picolé e Sorvete Milk Mony”. Se tivesse sorte, uma ou
duas quadras dali uma família grande, cheia de crianças, devolveria
o sorriso roubado pelo pessoal da obra.
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