03/02/2015

Picolés e sorvetes

Um dia acreditei que todos os pedreiros, ajudantes de obras e serventes de pedreiros mereciam um estágio prolongado no inferno. Não era maldade. Na verdade, tinha razões muito bem fundamentadas para chegar a esta conclusão. Era um rapaz de uns onze ou doze anos de idade. No final do mês de novembro, o sol começava a se mostrar cada vez mais presente, os cadernos e lápis já faziam parte do passado, então era tempo de se dirigir até a fábrica de picolés e sorvetes Milk Mony, do Seu Leopoldo. Ficava ali perto da Escola General Osório.
Antes, porém, tinha que conseguir uma Carteira da Saúde. De posse do documento, poderia transitar livremente pelas ruas da cidade, sob um sol escaldante, tentando vender picolés e sorvetes. Ostentava um surrado guarda-pó branco com dois bolsos. Num deles ia depositando o dinheiro da venda. No outro a carteira da saúde. Seu Leopoldo, no entanto, era todo cerimonioso. Primeiro realizava alguns testes para saber se o menino desempenhava com alguma competência a arte da venda. No primeiro dia, abastecia uma caixinha de isopor com uma dezena de picolés de suco. O desafio era percorrer a Praça da Matriz e vender o maior número possível, antes que os picolés derretessem.
Se o garoto desse conta do recado, se garantia no nobre cargo. Era promovido. Ganhava uma caixa com gelo seco. Aí era uma tranquilidade, eis que os picolés duravam muito mais tempo. Evitava as correrias até a fábrica para trocar os picolés quase descongelados por outros mais tenros. Uma ou duas semanas com a caixinha e, se aprovado o vendedor, passava para o carrinho. O carrinho recebia placas metálicas com água no interior. Como ficava a noite toda no freezer a água congelava e garantia picolés e sorvetes íntegros o dia todo.
Os meninos mais velhos vendiam bem mais. Alguns tinham o privilégio de vender em pontos fixos. Os que ficavam na rodoviária terminavam o dia com uma cifra de mais de 200 picolés vendidos, ganhavam uma boa comissão e eram alvo da inveja de todos os outros. No final do dia, na hora do acerto de contas, Seu Leopoldo pagava as comissões, distribuía alguns elogios e palavras de incentivo. Os melhores vendedores ganhavam potes de sorvete. Os pequenos tinham como prêmio de consolação picolés retorcidos que haviam descongelado e voltavam para o freezer.
Quando chovia, não havia venda. Era dia perdido. Por isso, acordávamos cedo e tentávamos adivinhar o comportamento do tempo. Se a cara não estivesse boa, voltávamos para a cama. Porém, havia dias em que o engano era grande. As nuvens pesadas sumiam no meio da manhã. O sol aparecia com decisão. O calor tomava conta da cidade. Aqueles que haviam arriscado e se apresentavam na fábrica, saíam com os carrinhos. Os retardatários eram punidos com as caixinhas de isopor.
Entre os compradores, os trabalhadores da construção civil eram vistos com desconfiança pelos pequenos vendedores. Duas artimanhas eram comuns. Primeiro perguntavam quais os sabores estavam disponíveis. “De fruta tem abacaxi, laranja, limão, maracujá, tangerina e uva. Cremoso tem de coco, ovos, nata, chocolate, morango e creme holandês”. Dito isso, começavam a caçoar pedindo sabores que nem existiam naqueles tempos como pitanga, goiaba, manga e ameixa. Não dá pra negar que a vontade que sentia era a de mandar o comprador para o inferno.
Outra prática comum era cercar o carrinho e começar a pedir picolés. Três, quatro, cinco, seis pessoas ao mesmo tempo. Depois, enrolar de tal forma que o pobre vendedor se perdia nas contas. Alguém ficava no lucro. E este alguém normalmente era um marmanjo da obra que saía rindo por ter levado vantagem sobre um menino que se atrapalhava na matemática.
Não dava tempo para entrar em depressão. O dia era longo e o trajeto também. O negócio era recolher o prejuízo, engolir o possível choro e a vergonha de ter sido enganado, fechar o carrinho e sair gritando “Picolé e Sorvete Milk Mony”. Se tivesse sorte, uma ou duas quadras dali uma família grande, cheia de crianças, devolveria o sorriso roubado pelo pessoal da obra.  

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