Adão e Eva, de Lucas Cranach, |
Muitas
histórias vêm sendo repetidas ao longo dos tempos. E cada um que
conta coloca seus sais, açúcares e as porções de pimenta que
julga necessário. Com isso, as histórias vão tomando o gosto do
contador, as tramas vão se modificando e a realidade vai se tornando
outra bem distinta da original. Um caso ocorrido no passado nunca
mais será exatamente aquilo que ocorreu. Com a história que vou
rememorar ocorreu exatamente isso: contada de geração para geração
foi sendo modificada de tal forma que hoje ninguém mais tem certeza
do que verdadeiramente aconteceu.
Me
desculpe a falta de modéstia, mas, se puderes me dedicar um
tempinho, conto exatamente o que ocorreu no paraíso sem tirar nem
por. E faço isso não para me engrandecer, mas sim para restabelecer
a verdade. Eis que a verdade do paraíso eu sei. E como estamos numa
conversa franca e amiga,
acho prudente me despir de qualquer preocupação com o discurso da
falsa humildade. Seria bom não gastares seu tempo perguntando como
fiquei sabendo, pois não revelarei. Sei que sei. Se quiseres
acreditar em mim, tudo bem. Se serve assim, conto tudinho, nos
mínimos detalhes. Combinado?
O sol
brilhava como nunca naquelas terras. A água do lago era límpida.
Havia frutas em abundância. Os pássaros voavam para lá e para cá.
Os pequenos animais brincavam sem altercações. As temperaturas não
variavam muito por aqueles lados. A vida corria sem sobressaltos.
Não havia carências. Tudo abundava naquele pedaço de chão. Tudo o
que precisava existia ali. Ou, como veremos, quase tudo.
Porém,
Adão, um belo rapaz, forte e tranquilo começava a mostrar certa
impaciência. Tudo era tranquilo demais. Nada de imprevisto
acontecia. Os dias seguiam-se sempre no mesmo ritmo. Sem grande
mudanças. Jovem e solitário, Adão, o único humano que habitava
aquele reino, sentia um vazio. Tudo o quanto fazia com gosto nos
primeiros tempos agora não tinha mais sentido. Conhecera o
significado da palavra tédio. E o tédio, bem o tédio só pode
combatido com o novo, com algum elemento que desestabilize o que se
conhecia então. Mas, ele, preso ainda na sua infantilidade, não
conhecia nada disso. Nem desconfiava que poderia ser diferente.
Apenas intuía que algo havia de acontecer.
À
noite, deitado na relva, enquanto observava a lua cheia, nosso rapaz
desviou o olhar para outro canto do céu. Um pontinho luminoso correu
nervoso desenhando um pequeno risco de luz. A corrida foi tão rápida
e tão rapidamente também a luz sumiu da visão de Adão. E, como
num passe de mágica, o rapaz pediu ao dono do paraíso uma
companhia. Que não fossem mais cabras, porque ali havia algumas. Que
não fossem pássaros nem esquilos nem pavões nem qualquer animal
destes que gastam seu tempo realizando repetidamente suas pequenas
tarefas do dia a dia. Ele não sabia o que pedir, mas sabia
exatamente o que não queria.
Adão
no fundo desejava alguém que pudesse modificar a decoração daquele
lugar. Adão pensou, pensou e pensou. Ele não falava. Não precisava
falar. Bastava pensar. E isso ele sabia fazer. O Criador também não
falava. Ele se manifestava nas coisas belas que havia concebido.
E,
assim pensando, caiu num pesado sono. E dormiu o quanto pode. Não
foi incomodado por ninguém. Os pássaros que faziam uma algazarra
quando os primeiros raios de sol se mostravam, pareciam mudos. Voavam
respeitosamente no céu azul. Todos ao redor agiam com silencioso
respeito. Observavam Adão deitado na relva, imóvel. E ele
permaneceu assim por longo tempo.
Mas, um
certo tempo depois, eis que o estado de sono chegou ao fim. Ao abrir
os olhos, sentiu como se tivesse sido anestesiado e assim permanecido
por centenas de anos. Aos poucos foi voltando à realidade. E, ao
olhar para o lado, levou um susto. Uma criatura de carne e osso, de
olhos fechados estava deitada a poucos centímetros de seu corpo.
Nunca
tinha visto nada igual.
Era
Eva. Tinha cabelos negros como a noite sem lua. Os olhos amendoados,
os lábios vermelhos como os morangos silvestres. Os seios, redondos,
volumosos, imitando melões. Ela dormia serenamente como deve
repousar um anjo.
E Adão
instintivamente, querendo conhecer aquele novo ser, foi se chegando
mais perto. Podia sentir um doce perfume que exalava de seu corpo nu.
E gastou bom tempo observando seu corpo, notando as diferenças. E
consumiu aquele perfume que o acalmava e, ao mesmo tempo, parecia que
mexia de modo diferente com seu corpo e seus instintos.
Eva,
subitamente, sentindo que não estava só, acordou num sobressalto. E
se recolheu quando viu o rapaz que a admirava tão de perto. Estava
assustada. Não conhecia aquele outro que a encarava. Não tinha
ideia de onde estava e como chegara até ali. As ideias eram
confusas. Tudo era novo. Aquele lugar tão iluminado e rico ao seu
redor. Aquele outro que ainda a olhava com admiração. Tudo muito
estranho.
E o
estranhamento seguiu-se por dias. Aos poucos, porém, foram se
achegando. Foram tornando-se parceiros e colaboradores. O ágil Adão
subia em árvores e escolhia as melhores frutas e as jogava para Eva,
que as aparava sem pestanejar. E de fruta em fruta, Adão e Eva foram
construindo uma relação digamos de maior proximidade ainda. E, eis
que um dia, Adão olhou nos olhos de Eva com profundidade. E ela
experimentou um sentimento diferente. Ela teve prazer. Coisa que até
então desconhecia.
Bom,
depois disso, muita história rolou. Não vou contar detalhes, pois
isto pouco interessa. Porem, muitas versões a história ganhou.
Alguns dizem que os dois se envolveram tanto que acabaram
proporcionando a primeira safadeza que um homem e uma mulher fizeram.
Outros acreditam que a curiosidade, a mentira ou um sentimento menos
nobre acabou acendendo a ira do dono do paraíso, que os expulsou do
lugar. Afinal, o dono não quer ser contrariado.
De
minha parte posso dizer que talvez nada disso tenha acontecido.
Talvez tudo isso tenha sido uma história destas que se contam de pai
para filho. As minúcias vão sendo modificadas para agradar e
desagradar estes e aqueles.
Na
verdade, a impressão que tenho é que Adão e Eva não morreram. Nem
expulsos foram. Resistem até os dias de hoje. Não estão no
paraíso. São homens e mulheres comuns que se encontram, se
estranham, se agradam, se deliciam e constroem seus caminhos sem
juízo e sem pecado. São seres que criam uma pequena ou uma grande
história de encantamento.
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