01/06/2011

Os gênios e os loucos

Raul Seixas ( arte sobre foto)
Televisão não havia em casa. Valia-me da vizinha mais próxima para assistir a algum programa. A diversão não era segura, pois dependia do humor do casal. O problema é que, vez por outra, elegiam as tardes de domingo para colocar a vida afetiva em ordem. Ciumento e calibrado com alguns goles a mais de cachaça, o marido – gente boa quando sóbrio - muitas vezes partia para a ignorância, tentando agredir a esposa. Entre gritos, impropérios e empurrões, desferidos de lado a lado pelos desafetos, eu e os filhos do casal prudentemente abandonávamos o conforto do sofá e fugíamos para o lado mais seguro, o de fora da casa. As crianças retornavam quando os ânimos acalmavam. Eu, dotado de alguma dose de prudência infantil, abortava qualquer tentativa de diversão e fitava a casa de longe, ouvindo somente os sons do programa preferido.

Num dos programas de auditório da época, não sei se do Chacrinha ou do Silvio Santos, apareceu um indivíduo de roupa extravagante, justa, brilhante e colorida  (embora a tevê fosse em preto e branco nos nossos olhos de criança abundavam as cores), envolto em uma grande capa cheia de estrelas. Longas barbas e olhos escondidos por óculos escuros.
Tinha um jeito ímpar.  Cantava uma canção esquisita, que jamais havia ouvido, e se portava como um maluco. Em seu discurso patético, estranho e chocante, jurava piamente que os discos voadores sobrevoavam a Terra e que os seres de outros planetas já se encontravam entre a gente. Falava da inconstância do ser, da necessidade de se reinventar, de outras coisas tão profundas que causaram espanto, certo medo e muita admiração.
Raul Seixas surgiu assim, diante dos meus olhos de onze anos, numa tarde em que o casal brigão não brigou. Em uma tarde de domingo, talvez até ensolarado, onde o homem ciumento não se valeu do álcool, o casal não discutiu suas diferenças e nossos olhos puderam permanecer atentos ao louco, ao visionário ensandecido que vociferava versos que pouco entendia que dizia coisas como "longe das cercas embandeiradas que separam os quintais, no cume calmo do meu olho que vê assenta a sombra sonora de um disco voador".
Passados tantos anos da cena em tela (como diriam os causídicos) e mais de vinte anos da morte de Raul Seixas, vez por outra me encontro a refletir sobre esta sina dos nossos gênios das artes, especialmente da música tupiniquim. Tanto quanto outros ícones da música internacional que abandonaram a cena tão cedo (como Élvis, Janis Joplin, Hendrix), nossos artistas, especialmente os viscerais foram econômicos em sua passada por aqui. 
Raul, Elis Regina, Cazuza, Tim Maia e Renato Russo, somente para citar alguns, foram alguns dos que viveram intensamente a loucura do show, do espetáculo, da produção, do sentimento revelado penosamente, da voz sofrida compartilhada com crianças, maduros e velhos da nação. Inconformados com o seu tempo sucumbiram, embalados nos desvarios dos excessos. 
Busquei na internet alguma imagem do louco envolto em sua capa estrelada que vi naquele ano de 74. Mesmo que o Google não me dê este prazer, meus olhos, não me traem, logo "eu que não me sento no trono de um apartamento com a boca escancarada cheia de dentes, esperando a morte chegar... ".


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