29/12/2011

O menino e o cavalo bravo

Cena do filme O Cavalo Branco, 1953,
dirigido por Albert Lamorisse
O cavalo bravo corcoveia, negaceia daqui para lá e de lá pra cá. Rápido, destemido, mantém o gosto primitivo pela liberdade. Sobre seu lombo, com destreza incomum, agarrado nas crinas, o mirrado moleque, de pele clara e penetrantes olhos esmeraldas, se apruma. Com valentia incomum equilibra-se como pode. Determinado como ninguém, prometeu a si mesmo que não sairá de cima do animal enquanto ele não ceder. 
A refrega é intensa. O animal sua. Tenta desesperadamente lançar aquele corpo estranho para longe. Por fim, cansado da lida, o bichinho esmorece. O garoto triunfa. Mandem outro potro maleva para o genioso menino. Ele o devolverá amável a seu dono. 
As cenas épicas que abrem esta crônica são frutos da minha criatividade. É pura ficção. Nasceu da necessidade que tenho de contar a luta que se passa entre este menino e um cavalo selvagem nos dias de hoje. É bem verdade que este menino não existe mais. Ele é hoje um velho senhor, que não mantém a destreza do pequeno domador. Porém, os olhos esmeraldinos, estes sim, ainda estão ativos, como lanternas acesas chamando a atenção de todos.

23/12/2011

Sirenes abertas

Arte sobre foto
Moro no trecho entre a Estrada do Mar e o Hospital São Vicente de Paulo. Assim como eu, todos os milhares de moradores deste longo trecho estão acostumados à cena que se repete insistentemente. Não importa o dia, a hora. É certo que uma ambulância ou um caminhão de bombeiros irromperá em disparada pela av. Santos Dumont. Poucos minutos depois o veículo retornará em alta velocidade, com as sirenes abertas abrindo espaços no trânsito. No seu interior uma equipe de salvamento acompanhando um indivíduo ferido em mais um dos incontáveis acidentes de trânsito. Nos desastres de maior proporção as ambulâncias vão e voltam rapidamente socorrendo os envolvidos.
Houve um tempo em que se dizia que as mortes no trânsito são o resultado de uma guerra silenciosa. As sirenes abertas em sinal de socorro, que nossos ouvidos percebem a longa distância, porém, nos alertam para um problema que cresce assustadoramente apesar dos alertas das autoridades e da ampla divulgação que a mídia proporciona.

14/12/2011

Entre a vida e a morte

Está em voga a preocupação de celebridades com o tema morte. O Paulo Santana, dia desses na ZH, lembrava que a preocupação com a finitude corporal é coisa que chega junto com a maturidade. As crianças, os adolescentes e os jovens nem de longe avistam seu fim. Não precisam disso, eis que têm coisas mais importantes a fazer. As energias estão todas concentradas nas tarefas imediatas. O hoje, pelo menos neste estágio da existência, é o que basta. 
Outro gaúcho, não menos ilustre e não menos competente, o laureado repórter Caco Barcelos também aborda o tema em entrevista. Está verdadeiramente incomodado com a possiblidade de que a morte seja o fim de tudo. O doutor Varela, pretenso mestre de todos os assuntos, da saúde física às mais altas discussões filosóficas, também meteu o seu bedelho. Para a alegria dos ateus, dos materialistas, agnósticos, céticos e outras tribos, decretou que a morte do corpo é o fim e ponto final. Sem apelação, sem recurso. Só faltou dizer aquele velho bordão de antigo programa de humor: “-e não me venham com chorumelas!

09/12/2011

O homem primitivo hoje

Se um homem primitivo, daqueles que se orientavam tão somente pelo instinto, fosse catapultado até os nossos dias, levaria tal susto que seus membros ficariam imobilizados. O pavor tomaria conta de seu pequeno cérebro. Como tudo seria novo, grandioso, inexplicável, não se descarta a possibilidade de que o choque danificasse mesmo o funcionamento de sua mente. Tudo o que existe, prédios enormes, carros, tratores, aviões, escadas rolantes, anúncios luminosos, estátuas, monumentos seriam percebidos como grandes feras, prontas para um ataque.
Há um enorme fosso separando este homem primitivo do contemporâneo. Nossos antepassados mais remotos viviam sob o império do instinto. O medo, arma mais do que eficaz para a preservação da espécie, ditava o comportamento naqueles tempos marcados pelo constante  ataque das feras, de ameaças, de cataclismos, de transpiração e pouca inspiração.

03/12/2011

A visão do cotidiano

O cérebro humano se acostuma ao cotidiano. Uma imagem belíssima, estonteante, quando vista com frequência é incorporada de tal forma que se torna lugar comum. Também nas guerras, nas catástrofes, nos cenários de dor e sofrimento, ocorre este fenômeno. Os olhos percebem com maior intensidade o novo. As imagens corriqueiras passam batidas. É a novidade que chama a atenção. As imagens mais antigas, aquelas arquivadas nos compartimentos da memória, só são ativadas vez por outra, ainda assim quando são reunidas pelos sentimentos de saudade, de angústia, de satisfação ou tristeza.
Certa vez um grande amigo disse que estranhou quando visitava sua filha, que reside na frente de um dos cartões postais do Rio de Janeiro. Na sua constante pressa de resolver suas questões mais corriqueiras, não tinha olhos para a maravilha que se apresentava diariamente quando abria a janela de seu quarto.  Era como se aquela belíssima pintura natural fosse um adereço da sala de estar, daqueles a quem não dispensamos nem um furtivo olhar.