Faz um ano que a cantora Mercedes Sosa nos deixou. Foi em 04 de outubro de 2009 que ela partiu. Naquela semana, no Jornal Bons Ventos, publicamos crônica sobre La Negra.
Voz que silencia
Uma grande voz se calou. La Negra, mescla de indígenas e franceses, embalou os sonhos libertários de uma América Latina sitiada pelo coturno e pela baioneta. Foi uma das vozes que se ergueram enquanto o tempo fechava sobre brasileiros, uruguaios, argentinos, chilenos e paraguaios, submetidos a bater continência a gente do naipe de Alfredo Strossner, Juan Maria Bordaberry, Augusto Pinochet e Jorge Videla, que tinham como prática comum fechar a boca dos discordantes. Aos oponentes, ferro e fogo, tortura e morte. Gente sumindo, desaparecendo, deixando mães aflitas chorando na Praça de Maio, expondo fotografias de seus jovens filhos, líderes estudantis, guerrilheiros infantis, comunas e socialistas sonhadores, ou, ainda, gente comum que se viu no front, por acaso, sem saber muito bem onde estavam e o que queriam. Ousaram desafiar irresponsavelmente os defensores da pátria.
Mercedes Sosa, com sua voz imponente, forte, cortante, era a própria resistência em pessoa, o grito de quem não podia se expressar. Garotos desconhecíamos os cárceres, a guerrilha, a ditadura, as estratégias e os ideais de militares e de grupos organizados. O canto de La Negra, quase uma súplica pela liberdade de uma América Latina em sangue, no entanto, nos calava profundamente. Repetir alguns dos seus versos era o máximo que poderíamos fazer. E, se não resolvia grande coisa, nos colocava como partícipes de uma história que, efetivamente, se desenrolava tão longe, mas parecia ao mesmo tempo tão perto.
Ironicamente a canção que nos remete à estrela argentina da resistência, da latinidade, da irmandade latina, é uma música de Violeta Parra, a cantora e compositora chilena que se suicidou após um fracasso de um empreendimento cultural e de uma história de desencanto amoroso. Gracias a la vida é lirismo puro, um hino de resistência, gravado em todas as línguas, embalou uma geração de contestadores, revolucionários ou jovens comuns, que sonhavam construir um mundo melhor, com mais pão e menos repressão. “Graças à vida que me deu tanto/ me deus dois luzeiros que quando os abro/ perfeito distingo o preto do branco/ e no alto céu seu fundo estrelado/ e nas multidões o homem que eu amo...”.
Mercedes teve relações estreitas com o Brasil. Gravou com Chico Buarque, Milton Nascimento, Caetano Veloso, com o gaúcho Luís Carlos Borges. Fez parte da geração que se utilizava da arte para apresentar uma realidade cruel. Suas canções mostravam as feridas abertas na América Latina. Tempos que se foram e que não voltem, nunca mais. Fica na memória a voz que nos apresentou a dor dos que tombaram. “Eu só peço a Deus, que a guerra não me seja indiferente, é um monstro grande e esmaga toda a pobre inocência da gente”.
Deus te ouça, La Negra, e que nossos sonhos não sejam mais interrompidos pelo sobressalto de pesadelos. Que possamos marchar, mesmo que lentamente, na construção de uma sociedade um pouco melhor. Com mais pão e mais sonhos.
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