Minha mãe tinha muita paciência. O dia já havia se despedido a horas. No céu a lua mostrava-se brilhante. A bola, murcha, disforme, velha, ainda assim era perseguida pelo que restou da turma. Quatro ou cinco já haviam abandonado a peleia. Obedientes, sucumbiram aos primeiros chamados de suas mães.
Eu não. Era teimoso. Fome de bola. Não que fosse um filho desobediente. Era, isso sim, um moleque acometido de raro caso de surdez que durava enquanto a bola rolava pelo campinho ralo, cheio de tocos, irregular. Ali era o Maracanã. Na verdade, era uma tira de terra, espremida entre as casas e uma malha de eucaliptos. A goleira era de um passo, com as velhas havainas fazendo papel de poste.
As contendas diárias após a aula seguiam até a luz do dia esmaecer. Tentávamos acertar o que parecia ser uma bola de futebol. Minha mãe, vez que outra, apontava na janela gritando meu nome. Às vezes, entre um chamado e outro, uma verdadeira batalha se estabelecia. Tinha pressa de fazer mais um gol, mais pressa ainda tinha de deter os ferozes atacantes que se lançavam como um bando de guerreiros contra o meu território. Queriam a vitória a todo custo. Sentia-me ungido quando evitava o desastre. Acabado quando não reunia forças para impedi-los. Neste contexto, sempre parecia que um segundo a mais seria decisivo para definir aquela guerra. Era caso de vida e morte. Minha mãe entendia e tinha paciência, muita paciência.
Em casa, após as lutas homéricas no Maracanã, reunia o que sobrava de forças para um rápido banho e para um café com bolo frito. O corpo, ainda cansado, adormecia sem piedade. Acordar somente após três, quatro chamados. Muitas vezes somente após ser providencialmente sacudido pela minha mãe. Ocorre que as batalhas do campo do dia seguinte tinham sequência na noite. Nos sonhos defendia e atacava os territórios inimigos. Fazia gols e salvava milagrosamente o time. Vivia com fome. Com fome de bola. Minha mãe entendia. Ela tinha muita paciência.
Na escola o que se fazia de mais animado? Futebol é claro! Na hora do recreio, ainda que os guarda-pós fossem brancos - atenção nova geração guarda-pó era o nome da vestimenta que se usava como uniforme naquela distante época, era indispensável correr atrás da bola nem que o branco do uniforme fosse maculado. Chegava em casa e tirava o guarda-pó já escuro e necessitando de uma lavagem extremada. Para dar um toque de limpeza, minha mãe usava anil (pesquisem no Google senão terei que publicar um glossário logo abaixo). À tarde, a guerra começava de novo. Com exceção dos dias chuvosos. Bem aí, batia a tristeza! Ficar na janela olhando as gotas da chuva caírem era o que sobrava.
Crescemos e as preocupações de minha mãe mudaram de foco. A guerra já era outra. O cansaço agora era nos estudos, no trabalho e nas contendas mais complicadas do dia a dia. Ainda assim ela tinha paciência. Sabia esperar. Quando chega o Dia das Mães, lembro da minha. Ela já passou para outra existência. Quando sou paciente lembro-me dela. Minha mãe entendia. Ela tinha muita paciência. E paciência, percebe-se hoje, está em falta neste mundão que Deus criou.
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