Estava
pesquisando algo sobre pena e me aparece um texto, de autoria do
professor português Eduardo Henriques da Silva Correa, que trata
sobre os códigos penais dos primeiros séculos de Portugal. Tempos
difíceis aqueles. De constantes guerras, invasões, perseguições e
muita crueldade. A vida não era fácil para ninguém. A legislação
penal dos patrícios era um tanto quanto forte em vários aspectos.
As penas eram extremamente graves. O próprio rei determinava a
sanção. Muitas vezes impondo agravantes ainda mais cruéis do que as
penas já estabeleciam nas ordenações.
A
blasfêmia, falar mal do rei (de seus filhos, sobrinhos, tios e de
qualquer membro da Corte), era um dos crimes mais graves, por óbvio.
Não havia espaço para oposição. Os faladores eram punidos com a
fogueira. Antes disso, talvez para garantir que no outro mundo o
indivíduo não repetisse o ato, a língua do indivíduo era extraída
pela garganta. A execução na fogueira somente ocorria após 20
dias dos atos preparatórios (extração da língua). Ou seja, falar
mal do rei não era um bom negócio naqueles tempos.
Nem
mesmo os membros do sistema judiciário tinham moleza. A vida de
Oficial de Justiça no reino português antigo não era fácil. Nem
de juiz. Desejar a mulher do próximo também não era algo muito
positivo. Especialmente se ela era parte em um processo judicial.
Previa a lei que se uma mulher mitigasse em processo e sofresse
assédio pelo juiz ou pelo Oficial de Justiça, estes teriam como
pena a castração. Ou seja, não havia grande espaços para
misturar trabalho e prazer.
O crime
de falso testemunho, por sua vez, tinha como apenamento o corte dos
pés, das mãos e a extração dos olhos do criminoso. Claro que,
dependendo da posição social do indivíduo, poderia ocorrer um
agravamento com prévio açoite ou outro constrangimento. As penas
para as classes sociais mais abastadas eram diferentes. Talvez daí
surja aquele corrente pensamento que se consagrou e chegou até os
nossos dias de que a Justiça trata os ricos e os pobres de maneira
diversa.
O
Lobisomem
Mas nada
mais curioso do que o instituto da perda da paz. A denominação
pode, à primeira vista, deixar a impressão de que se trata de uma
pena romântica e até mesmo poética. No entanto, o que menos se vê
é poesia. Tratava-se, isso sim, de uma pena temida. Por volta dos
séculos XI e XII, era encontrada no Código Germânico, chamada
originalmente de friedlosigkeit.
Era aplicada aos indivíduos que cometiam homicídios. Em Portugal e
Espanha, que encontravam-se sob o domínio dos visigodos, os acusados
de atentar contra a vida do outro eram banidos da sociedade, perdiam
o nome, o sobrenome, a família, as atividades profissionais, os bens
e o direito de conviver em grupo. Não bastasse isso, os demais
cidadãos estavam autorizados a caçar o criminoso e exterminá-lo.
Como desde sempre o condenado tem direito de ao menos
tentar a fuga, ocorria que muitos acusados se escondiam na floresta.
E de lá não retornavam mais à vida em sociedade. Viviam
solitariamente e, por isso, eram chamados de lobos. Selvagens,
barbudos, cabeludos, com roupas em farrapos, famintos, vez por outra,
especialmente nas noites de lua cheia, visitavam as propriedades
próximas. Ali abatiam animais de pequeno porte. Não era incomum
comer os bichos in natura.
Conta-se que, a partir daí, surgiram as imagens e as
histórias que relacionavam estes homens-lobos a animais proscritos,
as bestas cruéis dos lobisomens. Meio homem meio bicho, selvagem e
insaciável, sempre à procura de sangue para curar sua fome.
Amaldiçoados pelos seus erros, sem direitos, sem família e sem
futuro, foram condenados a viver em fuga.
O instituto da perda da paz com o passar do tempo foi
sendo superado por punições mais brandas como as penas pecuniárias
e as restritivas de direitos. De fato, a lei penal deixou de
contribuir para o surgimento de novos lobisomens. O imaginário
popular, no entanto, misturando um ou outro fato verídico às
mitologias dos povos do passado ampliou sobremaneira a força deste
monstro poderoso e cruel, desprovido de qualquer freio moral, capaz
mesmo de entrar nas casas e retirar do berço um bebê, levá-lo para
a floresta e transformá-lo em um novo lobo que o sucederá no
cumprimento da sua maldita sina.
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