16/09/2014

A perda da paz

Estava pesquisando algo sobre pena e me aparece um texto, de autoria do professor português Eduardo Henriques da Silva Correa, que trata sobre os códigos penais dos primeiros séculos de Portugal. Tempos difíceis aqueles. De constantes guerras, invasões, perseguições e muita crueldade. A vida não era fácil para ninguém. A legislação penal dos patrícios era um tanto quanto forte em vários aspectos. As penas eram extremamente graves. O próprio rei determinava a sanção. Muitas vezes impondo agravantes ainda mais cruéis do que as penas já estabeleciam nas ordenações.
A blasfêmia, falar mal do rei (de seus filhos, sobrinhos, tios e de qualquer membro da Corte), era um dos crimes mais graves, por óbvio. Não havia espaço para oposição. Os faladores eram punidos com a fogueira. Antes disso, talvez para garantir que no outro mundo o indivíduo não repetisse o ato, a língua do indivíduo era extraída pela garganta. A execução na fogueira somente ocorria após 20 dias dos atos preparatórios (extração da língua). Ou seja, falar mal do rei não era um bom negócio naqueles tempos.
Nem mesmo os membros do sistema judiciário tinham moleza. A vida de Oficial de Justiça no reino português antigo não era fácil. Nem de juiz. Desejar a mulher do próximo também não era algo muito positivo. Especialmente se ela era parte em um processo judicial. Previa a lei que se uma mulher mitigasse em processo e sofresse assédio pelo juiz ou pelo Oficial de Justiça, estes teriam como pena a castração. Ou seja, não havia grande espaços para misturar trabalho e prazer.
O crime de falso testemunho, por sua vez, tinha como apenamento o corte dos pés, das mãos e a extração dos olhos do criminoso. Claro que, dependendo da posição social do indivíduo, poderia ocorrer um agravamento com prévio açoite ou outro constrangimento. As penas para as classes sociais mais abastadas eram diferentes. Talvez daí surja aquele corrente pensamento que se consagrou e chegou até os nossos dias de que a Justiça trata os ricos e os pobres de maneira diversa.

O Lobisomem

Mas nada mais curioso do que o instituto da perda da paz. A denominação pode, à primeira vista, deixar a impressão de que se trata de uma pena romântica e até mesmo poética. No entanto, o que menos se vê é poesia. Tratava-se, isso sim, de uma pena temida. Por volta dos séculos XI e XII, era encontrada no Código Germânico, chamada originalmente de friedlosigkeit. Era aplicada aos indivíduos que cometiam homicídios. Em Portugal e Espanha, que encontravam-se sob o domínio dos visigodos, os acusados de atentar contra a vida do outro eram banidos da sociedade, perdiam o nome, o sobrenome, a família, as atividades profissionais, os bens e o direito de conviver em grupo. Não bastasse isso, os demais cidadãos estavam autorizados a caçar o criminoso e exterminá-lo.
Como desde sempre o condenado tem direito de ao menos tentar a fuga, ocorria que muitos acusados se escondiam na floresta. E de lá não retornavam mais à vida em sociedade. Viviam solitariamente e, por isso, eram chamados de lobos. Selvagens, barbudos, cabeludos, com roupas em farrapos, famintos, vez por outra, especialmente nas noites de lua cheia, visitavam as propriedades próximas. Ali abatiam animais de pequeno porte. Não era incomum comer os bichos in natura.
Conta-se que, a partir daí, surgiram as imagens e as histórias que relacionavam estes homens-lobos a animais proscritos, as bestas cruéis dos lobisomens. Meio homem meio bicho, selvagem e insaciável, sempre à procura de sangue para curar sua fome. Amaldiçoados pelos seus erros, sem direitos, sem família e sem futuro, foram condenados a viver em fuga.
O instituto da perda da paz com o passar do tempo foi sendo superado por punições mais brandas como as penas pecuniárias e as restritivas de direitos. De fato, a lei penal deixou de contribuir para o surgimento de novos lobisomens. O imaginário popular, no entanto, misturando um ou outro fato verídico às mitologias dos povos do passado ampliou sobremaneira a força deste monstro poderoso e cruel, desprovido de qualquer freio moral, capaz mesmo de entrar nas casas e retirar do berço um bebê, levá-lo para a floresta e transformá-lo em um novo lobo que o sucederá no cumprimento da sua maldita sina.      

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