Quando nos damos conta, nossa memória está quase apagada. Vai restando muito pouco. |
O mundo
pega fogo. Guerras, denúncias de corrupção, disputas pelo poder,
permanentes bombardeios reais e virtuais. E o cronista ali, quieto no
seu mundo, falando de coisas de sua infância, da cena que viu na
padaria da esquina, do gosto do café que tomou no barzinho ou em
suas significativas conquistas que, aos olhos dos outros, não
passam de prosaicas histórias do dia a dia. Coisinha leve que, no
fundo, não têm o poder de mudar o rumo da humanidade.
Sei
que, por vezes, os cronistas sofrem por se sentirem assim tão
distantes das manchetes dos jornais. E, certamente, há aqueles
leitores mais críticos, ácidos e exigentes que também estranham.
Como que, num mundo onde bombas destroem corpos de crianças e
velhos, onde os sistemas de saúde não funcionam, onde as relações
estão tão recheadas de preconceitos, este indivíduo se arvora no
direito de falar destas situaçõezinhas que não influenciam em nada
no funcionamento das coisas?
Ocorre
que o mundo está cheio de especialistas. Há um sem número de
pessoas preparadas, que entendem os meandros da política
internacional, que destrincham com facilidade todos os detalhes da
intrincada tramoia que envolve judeus e palestinos, que sabem muito
bem como funciona a luta pelo poder entre as correntes que dominam o
mundo árabe, que conhecem como funcionam as mentes dos terroristas e
dos estrategistas da luta antiterror, que são capazes de antecipar
com maestria as ondulações dos humores da bolsa de Tóquio. Ou
seja, há especialistas demais para tudo.
O
cronista, no entanto, é um generalista. É um contador de histórias
pequenas. É um colecionador de pequenos dramas e de pequenas
conquistas. É, por vezes, um antigo retratista distraído que tira
fotografias na praça e desavisadamente consegue a proeza de focar
sua lente mais no prédio do que na pessoa.
Me diz
uma querida amiga que gosta de ler esta coluna especialmente quando
identificamos as ruas, as pessoas e as situações vivenciadas por
muitos de nós há algum tempo. O passado, segundo ela, vai sendo
esquecido aos poucos. Quando nos damos conta, nossa memória está
quase apagada. Vai restando muito pouco. Ficam somente pequenos
fragmentos. As casas vão sendo destruídas. As ruas vão se
modificando. Algumas pessoas partem de nossas vidas. Outras chegam.
Eis que, um dia, notamos que tudo ao nosso redor mudou. E algo de
importante se perdeu nesse tempo. Nossos olhos, focados nas questões
mais prementes, no estresse das coisas a serem resolvidas, não
notaram que o cenário foi se mudando. E nem mesmo notamos que nós
mudamos.
Confesso
que é reconfortante ouvir coisas deste tipo. É muito bom saber que,
de algum modo, somos capazes de dar as mãos a alguns de nossos
leitores e sermos aliados numa viagem leve e comovente a algum doce
cantinho de nossa memória que um dia foi tão importante e que, no
momento, estava fadado ao esquecimento.
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