25/08/2015

O Mapa múndi

O mundo aberto em frente aos nosso olhos parecia uma colcha de retalhos. Multicolorido, plano. O artesão, no entanto, não havia cortado os pedacinhos com esmero. Parecia que o tecido havia sido rasgado de qualquer jeito. Havia pedaços maiores, pedacinhos menores. Sutis linhas pretas separavam os pedaços. Uns riscos azulados corriam para cima e para baixo. Longas extensões azuladas destacavam-se.
Nas cabecinhas da terceira ou da quarta série, parecia pouco provável que aquela folha colorida fosse capaz de abrigar rios límpidos e cheios de vida, lagos congelados aguardando a chegada da primavera, montanhas que subiam em direção aos céus, florestas onde se escondiam sacis, iaras, lobisomens e mulas sem cabeça, cidades inteiras onde meninos corriam nos campinhos atrás de uma bola murcha ou nas ruas calçadas entre os raros carros que passavam, onde meninas pulavam de corda e as mães limpavam casas e colocavam a roupa no varal e, vez por outra, sapecavam uma varada nas pernas do moleque mal educado e linguarudo. Era difícil entender como cabia tanta gente, tanta coisa. Era impossível imaginar que naquele pedaço pequeno de papel carros vermelhos, azuis, verdes ou raramente brancos seguissem em fila pela estrada de piche em direção ao litoral.

24/08/2015

A Isca

Um dos termos mais usados nos últimos tempos na mídia, na rodinha de café, na de chimarrão ou na mesa de bares, entre uma cerveja e outra, entre um petisco e outro, entre uma risada e outra, é corrupção. Há um forte apelo para condenar todos quantos corruptos forem encontrados no solo pátrio. Saudável, isso. Desejável, com certeza. Porém, como tantos termos que são usados com tanta insistência, a expressão vai se desgastando. No caso específico, podemos afirmar com a mais firme das convicções: todos sabem exatamente o que é corrupção. Mas, convenhamos a maioria não conhece a extensão que o termo carrega.

11/08/2015

Baile de Máscaras

O calmo e silencioso bem que pode guardar dentro de si um vulcão. Dominado durante o dia, escanteado pelas tarefas improrrogáveis, abafado pelos afazeres comuns, lentamente vai se mostrando. E, imperceptivelmente, se prepara para virar o jogo. E é à noite, quando tudo o quanto é rotina se esconde, quando os sons são raros e o tempo aparentemente deu uma trégua, que a lavra fervilha.  O estômago esquenta, as pernas parecem pegar fogo. Aí não há sono que apareça Não há calma e tranquilidade que resistam. De nada adianta contar carneirinhos nem vacas nem pássaros nem elefantes nem sementes de milho ou de feijão. Não há criatividade nem técnica que esfrie o calor que vem de dentro, acendendo fogos que bem pareciam cinzas de um passado tão distante.
O frenético e agitado, visto assim pelos olhos dos outros, bem que pode guardar dentro de si um lago de águas límpidas, mansas e pacíficas. E, tão logo saído das lides diárias, pode fechar a porta de casa e se entregar à tranquilidade que o transborda. Aí não haverá tempestade que o faça tremer nem ventos que o tirem do prumo nem surpresas que o tire do rumo.
Quando a multidão caminha cada um é apenas multidão. Não há um rosto, não há uma identidade. Há a multidão tão somente. Uma massa uniforme que se move num só sentido. A soma de todos os que caminham por ali.  Porém, o olhar mais atento, identificará que a unidade não existe. São seres, são indivíduos, são histórias únicas que se movem. No entanto, sem tempo para dizer “ei, eu sou assim”, “ei eu sou assado”. O calmo e silencioso que carrega um vulcão dentro de si ou o frenético e agitado que guarda silencioso lago nas suas entranhas caminham como tanto outros. A multidão os engole no dia a dia.
A imagem é clara. Não sei quem disse, mas quem disse isso certamente o fez com sabedoria: os indivíduos constroem suas máscaras ao longo dos tempos. No público apresentam o que de melhor produziram. No particular, no entanto, jogam a máscara de lado e viram vulcões ou lagos, mostram os dentes de raiva ou impulsionados por um sorriso leve e verdadeiro.
De algum modo, o dia a dia é um baile de máscaras. E os mascarados caminham para lá e para cá. E se misturam com a multidão, formando uma só massa. Vulcões e lagos trilhando lado a lado os caminhos que lhes cabem.      

04/08/2015

O Jardineiro

A turma recebeu a tarefa de produzir um trabalho em grupo. Os grupos foram cuidadosamente separados pelo professor. Os alunos, de quinta ou sexta série,  tinham liberdade total para criar a partir de determinado tema. Jogral, que invariavelmente caminhava para o rotundo fracasso;  distribuição de impressos em mimeógrafos, que agradava a todos menos pelo conteúdo, mais pelo forte cheiro de álcool que inebriava toda a classe; coreografias das mais diversas, que, em regra, mais constrangimento causavam do que prazer aos artistas e mesmos aos diletos expectadores.
Nosso grupo, não sei porque raios, escolheu fazer alguma coisa parecida com o teatro. Não era uma peça, pois o tempo era diminuto. Era um esquete. Alguém assumiu a coordenação. Um ou dois outros se puseram a bolar toda a trama a ser representada. Algumas poucas reuniões foram realizadas. Sei que chegou num determinado momento e tudo estava rigorosamente pronto. Não abri a boca nas reuniões nem fiz exigências quanto ao papel que me caberia. Pelo contrário, intimamente minha timidez torcia para que de algum modo a tarefa fosse cancelada e não necessitássemos de uma exposição que antevia seria um grande desastre.
Ficou estabelecido que alguns colegas produziriam algumas coisas em casa. O cenário ficou para alguém, a sonografia ficou para outro, os figurino e assim por diante. Certo que faltou supervisão.
No dia marcado para a apresentação, o grupo foi se postando no local determinado. O nervosismo era visível. E aumentava ainda mais quando fomos constatando que não havia nada de cenário, nada de sonografia e nada de figurino. Como a tragédia não era pequena, constatou-se, ainda, que alguns membros do grupo não tinham sequer falas. Eu era um deles. E aí foi aquela correria para a improvisação. Lembro que não havendo como incluir novos personagens naquela bagunça coube-me o nobre papel de jardineiro. Sim, jardineiro. Só que não havia ancinho nem tesoura nem pazinha.  Flores então, nem pensar.
E o tal esquete foi apresentado com notável falta de entusiamo no grupo e na plateia. E não falei palavra. E não ouvi aplausos. Só alguns risos verdadeiros. E o professor, que dava a nota na hora, considerou aquilo tudo um lixo. E ainda falou abertamente do desgraçado do jardineiro que além de não falar nada, ainda ficou de costas para o público, algo totalmente contra a boa arte da representação.
Se o vexame coletivo marcou de algum modo minha existência estudantil, não foi suficiente para eliminar a minha admiração pelas pessoas que conseguem com maestria, com gestos simples e leves tornar o mundo (muitas vezes cinzento demais) em algo mais colorido, mais belo e aprazível.