Carregava um pote abarrotado de
bolas de gude. O pote era pequeno. Mas isso não importava. Estava cheio até a
boca. Azuladas, esverdeadas, leitosas. Só não havia bolão porque bolão não
cabia no pote. As unhas eram sujas de terra e riscadas pelo constante atrito
com a bolinha de vidro. O polegar
ostentava um calo de tanto empurrar a bolinha em direção às outras.
Certo
dia, de maneira desavisada, olhei de perto minha joga preferida. E vi que
dentro de sua imensidão uma nuvem se destacava. E olhando com mais cuidado
notei que aquela nuvem tão pequena escondia planetas, sóis, luas, meteoros e
meteoritos. E que, naqueles mundos tão distantes, meninos saiam de casa de
maneira fugidia e se juntavam num terreno plano e arenoso. E traçavam no chão
um círculo onde casavam suas bolitas. E riscavam uma linha alguns metros à
frente. Jogavam com força calculada suas bolitas até a linha. Quem ficasse mais
perto da risca teria a primazia da primeira jogada. E, às vezes, gastavam tempo
enorme medindo imprecisamente os centímetros que separavam seus lances da
marca. Se não houvesse acordo um árbitro era convocado para dirimir a
contenda.
E
gastavam-se horas a fio neste vai e vem. E o choque das bolinhas afastando do
gude outras dava uma satisfação enorme. O coração disparava, no entanto, quando
a joga, em virtude da imprecisão do jogador, não encontrava forças suficientes
para sair do círculo e morria ali mesmo. Que dor perder para o adversário a
melhor das bolitas.
E
a tarde ia findando. Antes, porém, enquanto o sol não se escondia atrás do
morro, cabia subir na bergamoteira mais próxima e dali colher a mais bela
fruta. Ou, ao menos, a mais bela possível ao tamanho do braço ou da taquara eu
era usada na colheita. E, com as unhas sujas e os dedos estropiados, de forma
quase maquinal, remover a casca e jogar na boca gomo por gomo. E separar
pacientemente as sementes entre os dentes. Com rara maestria, apertar
lentamente os gomos que estourando iam liberando o escorregadio suco.
Era
hora de voltar para casa. Sujos e alegres. Mal lavavam as mãos e se jogavam
diante de uma xícara de café preto, servido pela atenta mãe. E os bolinhos
fritos completavam a festa, mesmo diante do mantra invariavelmente repetido
pela mãe: “menino não seja guloso, deixa pros outros”.
Um
banho de bacia dos mais breves possíveis sem remover toda a sujeira cuja marca
ficaria na toalha escura. Estava pronto
para o sono. E ele chegava rápido. E mal cerravam os olhos e já estavam no
campo de novo. Ao invés dos calções de tergal e da camisa puída, do campinho
com espinhos e touceiras, da bola murcha e sem cor, o que aparecia era um
Maracanã cheio. E a torcida fazia um barulho infernal. E as pernas travavam. E
o corpo não mexia. E tormento tomava conta. E o medo amarrava ainda mais as pernas.
E o suor corria pelo rosto. As
panturrilhas, finas e cansadas, doíam. E eis que o corpo todo destrava a tempo
e o pé vai em direção á bola e acerta um tiro certeiro. Um só chute. E que gol.
E a torcida levanta. E dentro do campo todos se abraçam. E nas arquibancadas
também. E gritam seu nome. E gritam seu nome insistentemente.
E
ele acorda. Sua mãe grita seu nome. “Acorda, acorda. Tá na hora do colégio!”. E
começa outro dia. Aula pela manhã, jogo de bolita e futebol com bola murcha à
tarde. Bergamotas furtivas, café preto e pão de casa, banhos leves, sujeira na
toalha. E os meninos sonham com as pernas cansadas, com os gols que farão na
vida.
Há
um mundo inteiro dentro de uma bolinha de gude. Quem olhar bem dentro de um
delas se surpreenderá.
Bem assim.
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