20/09/2015

Bola de gude

Carregava um pote abarrotado de bolas de gude. O pote era pequeno. Mas isso não importava. Estava cheio até a boca. Azuladas, esverdeadas, leitosas. Só não havia bolão porque bolão não cabia no pote. As unhas eram sujas de terra e riscadas pelo constante atrito com a bolinha de vidro.  O polegar ostentava um calo de tanto empurrar a bolinha em direção às outras.
Certo dia, de maneira desavisada, olhei de perto minha joga preferida. E vi que dentro de sua imensidão uma nuvem se destacava. E olhando com mais cuidado notei que aquela nuvem tão pequena escondia planetas, sóis, luas, meteoros e meteoritos. E que, naqueles mundos tão distantes, meninos saiam de casa de maneira fugidia e se juntavam num terreno plano e arenoso. E traçavam no chão um círculo onde casavam suas bolitas. E riscavam uma linha alguns metros à frente. Jogavam com força calculada suas bolitas até a linha. Quem ficasse mais perto da risca teria a primazia da primeira jogada. E, às vezes, gastavam tempo enorme medindo imprecisamente os centímetros que separavam seus lances da marca. Se não houvesse acordo um árbitro era convocado para dirimir a contenda.
   
E gastavam-se horas a fio neste vai e vem. E o choque das bolinhas afastando do gude outras dava uma satisfação enorme. O coração disparava, no entanto, quando a joga, em virtude da imprecisão do jogador, não encontrava forças suficientes para sair do círculo e morria ali mesmo. Que dor perder para o adversário a melhor das bolitas.
E a tarde ia findando. Antes, porém, enquanto o sol não se escondia atrás do morro, cabia subir na bergamoteira mais próxima e dali colher a mais bela fruta. Ou, ao menos, a mais bela possível ao tamanho do braço ou da taquara eu era usada na colheita. E, com as unhas sujas e os dedos estropiados, de forma quase maquinal, remover a casca e jogar na boca gomo por gomo. E separar pacientemente as sementes entre os dentes. Com rara maestria, apertar lentamente os gomos que estourando iam liberando o escorregadio suco.
Era hora de voltar para casa. Sujos e alegres. Mal lavavam as mãos e se jogavam diante de uma xícara de café preto, servido pela atenta mãe. E os bolinhos fritos completavam a festa, mesmo diante do mantra invariavelmente repetido pela mãe: “menino não seja guloso, deixa pros outros”.
Um banho de bacia dos mais breves possíveis sem remover toda a sujeira cuja marca ficaria na toalha escura.  Estava pronto para o sono. E ele chegava rápido. E mal cerravam os olhos e já estavam no campo de novo. Ao invés dos calções de tergal e da camisa puída, do campinho com espinhos e touceiras, da bola murcha e sem cor, o que aparecia era um Maracanã cheio. E a torcida fazia um barulho infernal. E as pernas travavam. E o corpo não mexia. E tormento tomava conta. E o medo amarrava ainda mais as pernas. E o suor corria pelo rosto.  As panturrilhas, finas e cansadas, doíam. E eis que o corpo todo destrava a tempo e o pé vai em direção á bola e acerta um tiro certeiro. Um só chute. E que gol. E a torcida levanta. E dentro do campo todos se abraçam. E nas arquibancadas também. E gritam seu nome. E gritam seu nome insistentemente.
E ele acorda. Sua mãe grita seu nome. “Acorda, acorda. Tá na hora do colégio!”. E começa outro dia. Aula pela manhã, jogo de bolita e futebol com bola murcha à tarde. Bergamotas furtivas, café preto e pão de casa, banhos leves, sujeira na toalha. E os meninos sonham com as pernas cansadas, com os gols que farão na vida.
Há um mundo inteiro dentro de uma bolinha de gude. Quem olhar bem dentro de um delas se surpreenderá.

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