18/02/2018

Sobre cães e músicas


Perseguição – É final de tarde. Três cães se encontram na praia. Um é de madame. Os outros nem tanto. Mesmo diferentes juntam-se pelo mesmo ideal. Perseguem insanamente três quero-queros que voam baixo sobre a cabeça de corpos bronzeados e de branquelos de toda a ordem que ainda resistem na faixa de areia. Os pássaros se divertem e os cães também. Os caninos talvez pensem que é possível alcançá-los. Na vã tentativa, às vezes chegam a dar saltos. Coisa pouca. Sem resultados práticos. Os pássaros parecem zoar. Dão voltas e voltas pela praia. Voam baixo dando alguma esperança aos perseguidores. Súbito sobem um pouco mais. É risível a brincadeira. O pescador esquece o anzol na água e ri. A senhora sisuda ri também. Ri o menino pequeno que toma banho de cuequinha do Batman. Minutos depois, extenuados, os cães vão desistindo da brincadeira. Voltam a marchar seriamente. Os quero-queros seguem voando baixo.

Realidade – De tão repetido, o discurso vira norma. Vira certeza. Transita como realidade. Dizem que a vida no Brasil começa agora, depois que a última ala da escola de samba deixou a avenida. Bobagem. O ano começou faz tempo. A gasolina subiu quanto? Os governantes perderam tempo tentando empurrar o pacote que muda radicalmente a vida dos mais velhos e mais pobres? O ano não começou ainda? Começou, é claro. Na realidade, em alguns sentidos, 2017 não terminou.

Bom gosto – Às vezes leio ou ouço manifestações bem ácidas em relação às músicas que se destacam por aqui. Soa como: “No meu tempo era melhor. Só tinha música de qualidade”. Se o reclamante for alguém que vive rodeado de discos de música erudita ainda vá. Quando se trata de sucesso de público, seja no rádio, na tevê ou na internet, a preocupação com qualidade é coisa que menos conta. Nem só aqui. A letra a seguir ganhou uma carrada de prêmios no Grammy 2018*: “Lindinha, o que tá rolando? Você e sua bunda estão convidadas! Então estão convidadas a rebolar. Rebole para este cafetão. Rebole, rebole para este cafetão…” A quem interessar possa, os primorosos e inspirados versos são de  Bruno Mars não do É o Tchan nem do Terra Samba. É Rythm and Blues. Ah, tá!

Democracia – São quase vinte pessoas: meninos, meninas, jovens e veteranos. Um sol, uma areia, um gazebo, uma caixa de som, uma bateria de carro, mais de uma chopeira e  muita disposição. A praia é democrática. Cabe de tudo: funk, pagode, anos 80, sertanejo, nacional, internacional, bandinha alemã. “Eu moro aqui, você mora aí, estamos tão longe, será que vai dar certo?**”. A altura do som aumenta conforme o nível etílico num fenômeno conhecido como surdez alcóolica. Há complacência na faixa de areia. Umas meninas de um guarda-sol perto entram na brincadeira e aderem à coreografia. Dura pouco a empolgação. Mudou o ritmo de repente. Quem não gosta, cala. Quem cala, mesmo que inconscientemente, consente. E o som segue. Atravessa o meio-dia e chega no meio da tarde. Quando o chope terminar acaba a festa. “Porto Alegre é longe, tô indo de ônibus, pra te encontrar...”



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