Perseguição – É
final de tarde. Três cães se encontram na praia. Um é de madame. Os outros nem
tanto. Mesmo diferentes juntam-se pelo mesmo ideal. Perseguem insanamente três
quero-queros que voam baixo sobre a cabeça de corpos bronzeados e de branquelos
de toda a ordem que ainda resistem na faixa de areia. Os pássaros se divertem e
os cães também. Os caninos talvez pensem que é possível alcançá-los. Na vã
tentativa, às vezes chegam a dar saltos. Coisa pouca. Sem resultados práticos.
Os pássaros parecem zoar. Dão voltas e voltas pela praia. Voam baixo dando
alguma esperança aos perseguidores. Súbito sobem um pouco mais. É risível a
brincadeira. O pescador esquece o anzol na água e ri. A senhora sisuda ri
também. Ri o menino pequeno que toma banho de cuequinha do Batman. Minutos
depois, extenuados, os cães vão desistindo da brincadeira. Voltam a marchar
seriamente. Os quero-queros seguem voando baixo.
Realidade – De tão repetido, o discurso vira norma.
Vira certeza. Transita como realidade. Dizem que a vida no Brasil começa agora,
depois que a última ala da escola de samba deixou a avenida. Bobagem. O ano
começou faz tempo. A gasolina subiu quanto? Os governantes perderam tempo
tentando empurrar o pacote que muda radicalmente a vida dos mais velhos e mais
pobres? O ano não começou ainda? Começou, é claro. Na realidade, em alguns
sentidos, 2017 não terminou.
Bom gosto – Às vezes leio ou ouço manifestações bem
ácidas em relação às músicas que se destacam por aqui. Soa como: “No meu tempo
era melhor. Só tinha música de qualidade”. Se o reclamante for alguém que vive
rodeado de discos de música erudita ainda vá. Quando se trata de sucesso de
público, seja no rádio, na tevê ou na internet, a preocupação com qualidade é
coisa que menos conta. Nem só aqui. A letra a seguir ganhou uma carrada de
prêmios no Grammy 2018*: “Lindinha, o que tá rolando? Você e sua bunda estão
convidadas! Então estão convidadas a rebolar. Rebole para este cafetão. Rebole,
rebole para este cafetão…” A quem interessar possa, os primorosos e inspirados
versos são de Bruno Mars não do É o
Tchan nem do Terra Samba. É Rythm and Blues. Ah, tá!
Democracia – São
quase vinte pessoas: meninos, meninas, jovens e veteranos. Um sol, uma areia, um
gazebo, uma caixa de som, uma bateria de carro, mais de uma chopeira e muita disposição. A praia é democrática. Cabe
de tudo: funk, pagode, anos 80, sertanejo, nacional, internacional, bandinha
alemã. “Eu moro aqui, você mora aí, estamos tão longe, será que vai dar
certo?**”. A altura do som aumenta conforme o nível etílico num fenômeno
conhecido como surdez alcóolica. Há complacência na faixa de areia. Umas
meninas de um guarda-sol perto entram na brincadeira e aderem à coreografia. Dura
pouco a empolgação. Mudou o ritmo de repente. Quem não gosta, cala. Quem cala,
mesmo que inconscientemente, consente. E o som segue. Atravessa o meio-dia e
chega no meio da tarde. Quando o chope terminar acaba a festa. “Porto Alegre é
longe, tô indo de ônibus, pra te encontrar...”
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