Tinha saído do cemitério faz
pouco. Um sol muito forte mostrava-se sobre a cidade. Era um desses verões fora
de época. As pessoas saíam de casa pela manhã ainda encasacados e, ao meio-dia,
se tanto, começavam a se despir.
Era experiente o morto. Mas, pela
idade que tinha alcançado, ainda poderia ficar por aqui mais alguns anos. Tinha
casa, família, carreira, uma aposentadoria razoável e tudo o mais. Gostava de
cantar. Na infância tinha jogado bola pelas ruas irregulares da sua cidade.
Talvez até tivesse quebrado alguma vidraça num desses chutes que saem do
controle e depois viriam dor de cabeça diante de um vizinho zangado ou de uma
mãe preocupada com a disciplina do filho.
Faz pouco, ainda no trabalho, divertia-se
conversando sobre amenidades. Contava, vez por outra, pedaços de sua vida.
Cenas rápidas de vitórias e das inevitáveis derrotas. De um amigo que ajudou em
algum momento, de gente que apareceu e desapareceu deixando saudades, lições ou
nem tanto, de chefes que marcaram ou que incomodaram.
Uma enfermidade, no entanto,
abreviou sua existência. Vinha sofrendo fazia um tempo. Estava na fila.
Esperava que alguém morresse. Um órgão são e compatível era tudo o que
precisava. O tempo foi se esgotando. A marcha agonizante do tempo carregava
ansiedade, esperança e tristeza num só pacote. Não deu tempo. O corpo entrou em
colapso. A saúde se foi. Um milagre,
talvez, pediram os amigos e familiares. Apesar
das preces e das boas intenções, milagre não veio.
Os atos fúnebres fazia pouco
haviam terminado. Os colegas, ainda com areia do cemitério nos calçados e um ar
de afastamento nos olhos, retomavam seus postos de trabalho. Silêncio profundo.
Da cozinha vinha um cheiro do cafezinho recém-feito. Alguém ousou ligar uma música no computador. Elis, timidamente, vencia o indiferente
silêncio que se fazia na repartição. “Eu quero uma casa no campo/Onde eu possa
ficar no tamanho da paz/E tenha somente a certeza/Dos
limites do corpo e nada mais”.
Ninguém falou. Nem aprovação nem reprovação.
Só Elis transitava por ali. Sutil, misturando-se ao silêncio. Para quebrar o
incômodo, pensei em duas ou três frases que se encaixassem no momento. “Tu vê
como a coisa é cruel... O colega morreu. Morreu. E a gente continua fazendo as
mesmas coisas. Como se nada tivesse ocorrido”, joguei no ar sem destino certo.
Uma colega pediu paciência. “Não adianta ficar pensando nessas coisas. Melhor
abaixar a cabeça e trabalhar”, disse, juntando uns papéis que estavam em cima
da mesa e jogando um carimbo que nem precisava ser colocado naquela hora.
“Eu quero carneiros e cabras pastando
solenes no meu jardim/Eu
quero o silêncio das línguas cansadas/Eu
quero a esperança de óculos/E um filho de
cuca legal...”, ouvi enquanto saia pela porta em direção à rua. O sol ainda
estava forte. Mas, um ventinho já aparecia mostrando que o final da tarde seria
frio.
Na rua, tudo estava igual como antes. A
vida seguia. O camelô vendia camisetas falsificadas de time de futebol e uma
velha senhora perguntava onde fica a rodoviária. Uma viatura da polícia passou
em alta velocidade. Uma menina entediada atendia o celular: “Já disse que não
sei, mãe. Não me pergunta mais isso!”. O
dia seguia igual. Igual como antes.
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