26/02/2019

A Visão da Montanha


O mundo é mental dizem os entendidos. Vão mais longe, dizendo que há uma mente inteligente por trás de tudo o que existe, do que existiu e do que existirá. Boa parte da civilização chama esta mente inteligente de Deus. É uma forma de reduzir a complexidade e tornar palpável o que não é. Ou, até mesmo de certa desídia e conformidade.
Porém, enganamo-nos todos quando cremos que a mente inteligente substitui a mente da gente. Nossa visão de mundo depende mais de nosso foco e da nossa lucidez do que da intervenção de terceiros.
Pode parecer muito complexo isso tudo. Mas, no fundo, reside alguma simplicidade por aqui. Senão vejamos: imaginemos agora, usando este atributo fantástico que é nosso cérebro (um mundo infinito de conexões que geram realidades distintas a cada um), que vamos subindo uma montanha. Olhando do sopé da montanha avista-se um horizonte. Ora, este horizonte vai sendo modificado cada vez que a marcha avança em direção ao topo. Chegando lá em cima, a escalada revelará um horizonte mais amplo. O panorama será muito diferente daquele observado do sopé.

Os taoistas entendem que o mais importante é o caminho. Os budistas também entendem que a trajetória que se faz do sopé até o cume é o que importa a cada indivíduo. Dores no corpo, vontade de desistir, sede, fome, vento gelado ou sol escaldante, não importa. Tudo o mais fica pequeno quando se atingiu o cume.
A visão reducionista e religiosa do Ocidente foca todo o sentido da existência física na dor e no sofrimento. É a herança da cultura judaico-cristã, onde todos os humanos devem carregar a culpa por terem nascido a partir de um pecado original. Assim, durante a trajetória terrena devem carregar em suas costas uma parte do pecado cometido pelos ancestrais Adão e Eva. Nascem todos em débito com a mente criadora. E a conta vence todos os dias e vai se tornando impagável. A vida, assim, é triste. Muito triste. Parece que a mente criadora vai se alimentando destas multas, juros e correções que transformaram o principal numa montanha intransponível ao menos para os que creem ou que se submetem aos ditames de tal ordem.
Hoje, mesmo que o Papa Francisco pregue com exatidão e demonstre um esforço argentino para jogar luzes sobre as armadilhas construídas ao longo de séculos, mesmo que pensadores de inúmeras filosofias espirituais lancem aos quatro ventos de que o pensamento antigo foi superado e de que a divindade não está aí somente para cobrar as contas, ainda assim, parece crescer no seio da religiosidade certo clamor por menos liberdade, por menos conhecimento e por uma intervenção da mente criadora para punir todos os outros que não se adéquem ao sistema antigo.
Dia desses, logo após a morte do conhecido comunicador Ricardo Boechat, veio à tona a discussão por redes sociais se o cidadão amoroso, gentil e humano tinha alguma relevância ou deveria prevalecer sua tendência ao ateísmo. A turma do exército da fé acendeu a fogueira: importa para Deus o reconhecimento e a fé. Assim, o amor, o respeito, a compaixão, a gentileza, o desprendimento e tudo o mais que demonstram que o indivíduo é do bem foram jogados para a segunda divisão.
O indivíduo pode ser sacana, sovina, desumano, corrupto, mas, o que importa, pelo menos para esta gente, é que ele diga que crê. E Deus acredita? A mente suprema vem sendo subestimada nos últimos séculos. Pelo jeito são mais alguns séculos de preguiça pela frente. A imagem do sopé da montanha ainda agrada a muita gente. É o horizonte de cada um. Este horizonte só vai modificar a partir do movimento individual. Componente indispensável para isso é a vontade.

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