18/11/2021
As Filosofias de Vida
Os Inimigos da Nação
Dia desses, estava com a mão numa bergamota. Começava a levá-la para dentro de uma embalagem. O rapaz do mercado (Nacional/Big) veio correndo em minha direção. “Ei. O preço tá aumentando”, disse ofegante. Arrancou a plaquinha, bem na frente dos meus olhos, que ostentava R$ 3,55 o quilo e tascou uma um pouco maior com R$ 5,55. “Putz”, pensei. Devolvi o produto aos seus pares. Lembrei de Sarney e de Collor, na hora. Ainda sorri para o funcionário, afinal que culpa tem ele de não passar por um bom treinamento ou de contar com uma chefia que não liga muito para um simples consumidor?
No período da hiperinflação, que durou mais de uma década, entre o final dos anos 70 e o começo da década de 90, um dos grandes inimigos da população brasileira era o funcionário do mercado que tinha a tarefa de remarcar os preços. Naqueles tempos, os produtos tinham o preço afixado através de uma etiqueta. Diferente dos dias de hoje onde os códigos de barras carregam todas as informações, naqueles tempos analógicos as etiquetas se sobrepunham na medida do avanço da inflação. Chegou ao absurdo dos preços variarem diariamente.
Muitos mercados, para evitar o constrangimento, utilizavam o turno da noite para remarcar o preço das mercadorias. Na realidade, nunca se sabia o preço do arroz, do feijão, da farinha antes de entrar no supermercado. O plano econômico do presidente José Sarney congelou os preços e espalhou a ideia de que cada brasileiro deveria fiscalizar os mercados. Instituiu-se a figura do cidadão delator, o “Fiscal do Sanrey”. Um órgão, chamado SUNAB, recebia denúncias sobre aumento de preços e o gerente do mercado era ameaçado de prisão.
Os preços realmente despencaram. Só que as gôndolas acabaram vazias. Os fabricantes pararam de fornecer os produtos e o plano vazou. A boa ideia não vingou. Durante os anos 80, foram inúmeras as tentativas de conter a escalada dos preços, que miravam a Lua. O único sucesso foi em relação aos salários que foram imobilizados através do congelamento.
Plano Cruzado, Plano Cruzado Dois, Plano Bresser-Pereira, Plano Verão, Plano Collor, Plano Collor Dois: em todos houve um recuo inicial dos preços seguido de estratégias de sabotagem e da retomada da escalada inflacionária, logo depois. Isso ocorreu sistematicamente até a chegada do Plano Real, que trouxe uma estabilização econômica, já na década de 90.
As máquinas de etiquetagem foram substituídas pela exposição de preços nas próprias gôndolas. As leis tornaram-se menos rígidas em relação às estratégias de vendas e o inimigo do povo desapareceu.
Nos dias de hoje, por incrível que pareça, algumas cenas daqueles tempos começam a dar as caras. Os preços de alguns produtos tornam a compra um sonho. A carne bovina que o diga. A pandemia bem contribuiu para a mudança dos costumes. Os almoços familiares de domingo foram sendo suprimidos. No começo pela ação do vírus, hoje pelos preços proibitivos da carne bovina. Os espetos de picanha, alcatra e até mesmo de uma boa costela, que ostentavam nos storys e nos feeds do Instagram há alguns meses, deram lugar a prosaicas coxas e sobrecoxas de frango. É a vida, amigos! Como diria uma das Leis de Murphy: “ se algo pode dar errado, dará”.
Não precisa ir muito longe. Faz pouco tempo o quilo de um café razoável estava por volta de R$ 20,00. Hoje está na faixa dos 35 a 40 pilas. A inflação, como um ato de mágica, permanece rasteira, ao menos nas tabelas divulgadas pelos economistas do governo. Os governantes têm disso. Conseguem manter a ilusão por um bom tempo. Outro exemplo é o do azeite. Pulou para o grupo dos sete e pouco, oito reais e gostou dali. Agora nem pensa em descer. Na contrapartida, os salários minguam. As leis que garantiam alguma segurança foram todas mudadas para favorecer a produção e gerar riqueza (para quem, cara pálida?).
Outro viés desse novo momento do país: produtos que até então estavam em franco desaparecimento há décadas voltaram à mesa do brasileiro. Ossos de gado, de porco, de galinha, pelancas e graxas de animais viraram alternativa alimentar nestes novos tempos da Pátria Amada. Raspas de ossos viraram comida. Com a adição de água e sal tudo vira comida. Houve até um ministro que incentivou o consumo de restos de comida dos restaurantes para os pobres. Para alguns, no entanto, o país nunca esteve no caminho tão certo. Como diz outro princípio creditado a Murphy e que, de algum modo, é o motor para a difusão de notícias falsas (fake news): “sempre haverá alguém que vai acreditar”.
Os Preços
A realidade do dia a dia vivida pelo brasileiro nem sempre é aquela que aparece nos jornais televisivos e nas emissoras de rádios. Principalmente nos órgãos dirigidos por bispos e pastores, notadamente aliados com quem manda no boteco. Para estes, o país nunca esteve tão bem.
A verdadeira face, no entanto, está mais perto do que se imagina. Nos diálogos insuspeitos envolvendo gente simples, despreocupadas em externar opiniões e experiências, muito do que se vive nos atuais dias vem à tona. Sem muitos trejeitos e floreios.
“Gente do céu. Não sei como alguém que ganha salário-mínimo, com família, consegue viver nos dias de hoje”, disse a repositora de produtos no supermercado. Conversava com uma colega sua, uma promotora, que revelou, em voz baixa, que escondeu seu carro embaixo de uma lona, pois o preço dos combustíveis está proibitivo. Conversa vai conversa vem, ambas lamentaram que votaram nele. “Uma decepção. Não faz nada para o pobre”. “Olha o preço da carne… Que loucura. Não sei aonde isso vai parar!”.
As duas eleitoras arrependidas encontram-se agora sem esperanças. Não sabem o que fazer. E ano que vem tem eleições novamente. “Fazer o quê? Ninguém vai resolver, mesmo!', diz uma delas enquanto coloca mais produtos na gôndola do mercado.
A cena, vivenciada esta semana, talvez se repita em muitos mercados no país afora. A situação é a mesma. Preços exorbitantes. Inflação comendo os salários de quem ainda tem. Desemprego para dar e vender. Chefia falando abobrinhas, até mesmo mentindo descaradamente em rede nacional. Até os robôs do Facebook e do Instagram, frios como pedras, já chiaram. Aprenderam a indignação. Até para eles foi demais ligar o uso da vacina contra a COVID-19 à possibilidade de contaminação pela AIDS. “Censura”, deve ter gritado alguém, do alto de sua ignorância mitológica, achando que o direito à livre expressão abarca a difusão de informações falsas e de ilações preconceituosas.
E segue o baile. Apavorante silêncio. Resmungos e nada mais. Nem parece que o mesmo país que foi abaixo por causa de 0,20 a mais na passagem de ônibus tempos atrás. O papo está bom, mas, com licença: tenho que passar ali na Farmácia São João, onde só tem gente bonita e magra, “afinal, vamos escolher os bonitos porque o preço é o mesmo”.
O Feitiço do Tempo