Não me cansava de sentir repulsa sempre que a cena se repetia. Minha visão não havia ainda sido treinada para conceber como natural aquele ataque grosseiro, destrutivo e doloroso. Olhos de criança, virgens de maldade e de experiência, ainda sofriam certa angústia quando os corpinhos destroçados de animais serviam de banquete para as aves de rapina. E isso era comum para quem vivia na beira da RS 030, a Estrada Osório-Tramandaí, especialmente na temporada de veraneio.
Sincas, gordinis, opalas, mavericks e fuscas, as máquinas da época, passavam apressadamente levando famílias numerosas em direção às praias. Nas antenas ostentavam pequenos adornos, bolinhas de isopor coloridas ou, ainda, fitinhas multicores que balançavam graciosamente com a ação do vento. Muitos dos animais, cãezinhos ou gatinhos caseiros, tartarugas, cágados, bezerros ou potros, que inadvertidamente tentavam ultrapassar a rodovia, ficavam no meio do caminho. Atingidos pelos carros, tentavam ainda sobreviver se arrastando até a beira da estrada.
Nem bem fechavam os olhos e uma nuvem de aves escuras, os abutres, que conhecíamos como urubus, começavam a realizar vôos rasantes pelas proximidades. No início um mensageiro, um desbravador, pacientemente acompanhava a morte do bichinho. Vez por outra desferia uma bicada como que conferindo se a vida já havia se esvaído do corpo inerte. O espetáculo, para mim triste e incompreensível, se iniciava em poucos minutos. O bando de grandes aves se apossava do corpinho já sem vida. Em minutos, com bicadas certeiras, separavam a carne dos ossos. Terminado o rápido banquete, restavam alguns sinais do que um dia foi um ser vivo.