27/11/2012

Os abutres


Não me cansava de sentir repulsa sempre que a cena se repetia. Minha visão não havia ainda sido treinada para conceber como natural aquele ataque grosseiro, destrutivo e doloroso. Olhos de criança, virgens de maldade e de experiência, ainda sofriam certa angústia quando os corpinhos destroçados de animais serviam de banquete para as aves de rapina. E isso era comum para quem vivia na beira da RS 030, a Estrada Osório-Tramandaí, especialmente na temporada de veraneio.
Sincas, gordinis, opalas, mavericks e fuscas, as máquinas da época, passavam apressadamente levando famílias numerosas em direção às praias. Nas antenas ostentavam pequenos adornos, bolinhas de isopor coloridas ou, ainda, fitinhas multicores que balançavam graciosamente com a ação do vento. Muitos dos animais, cãezinhos ou gatinhos caseiros, tartarugas, cágados, bezerros ou potros, que inadvertidamente tentavam ultrapassar a rodovia, ficavam no meio do caminho. Atingidos pelos carros, tentavam ainda sobreviver se arrastando até a beira da estrada. 
Nem bem fechavam os olhos e uma nuvem de aves escuras, os abutres, que conhecíamos como urubus, começavam a realizar vôos rasantes pelas proximidades. No início um mensageiro, um desbravador, pacientemente acompanhava a morte do bichinho. Vez por outra desferia uma bicada como que conferindo se a vida já havia se esvaído do corpo inerte. O espetáculo, para mim triste e incompreensível, se iniciava em poucos minutos. O bando de grandes aves se apossava do corpinho já sem vida. Em minutos, com bicadas certeiras, separavam a carne dos ossos. Terminado o rápido banquete, restavam alguns sinais do que um dia foi um ser vivo.

23/11/2012

Causas e consequências


O professor David Fleck dizia que mais do que os marcos históricos, mais do que os personagens envolvidos, o que realmente interessava eram as causas e as consequências. Isto não fazia muito sentido para um menino de 11 ou 12 anos de idade, ainda envolvido com questões outras mais prementes e com os salutares sonhos juvenis. 
Com o tempo, no entanto, as informações recebidas vão se juntando em forma de mosaico. O que parecia uma imagem abstrata se revela algo claro, límpido. As convicções infantis, por sua vez, se tornam garatujas, eis que não chegam à arte final.
Levou tempo para entender esta questão dos ciclos. Hoje com mais clareza sinto que onde estivermos fazemos parte de histórias paralelas. Estamos dentro de conjuntos, rodeados de semelhantes. Estes conjuntos se tocam e ocorre a intersecção. O que parecia tão abstrato, tão complicado nas aulas de matemática hoje se revela tão real.
Somos personagens. Vivemos e atuamos. Interferimos nas histórias dos outros que, por sua vez, entram na nossa vivência. E assim seguimos inadvertidamente numa troca de experiências permanente. 
Cheguei a este tema diante da manifestação de uma querida colega. Pela manhã me disse: “hoje é meu último dia aqui!”. Lembrei que a vida é composta de ciclos. Avançamos no tempo e vamos juntando as experiências possíveis. Às vezes temos a nítida impressão de que já vivemos aqueles fatos em algum momento. Os dias passam e a cada dia se abre um pequeno ciclo que se fecha logo ali. As semanas são ciclos, os meses, os anos, as décadas. A vida é um grande ciclo. Pequeno, porém, se se considerar a vida do Universo.
O fechamento de ciclos pode representar dor, perda, satisfação, esperança. A certeza que se tem é de que após um ciclo outro começa. Este, porém, um dia também se fechará. E assim seguimos todos nós protagonistas aqui ou meros coadjuvantes acolá.
Certo é que somos os donos de nosso destino. Podemos iniciar ciclos e também abortá-los. Ações, palavras, pensamentos, sentimentos, emoções de hoje vão formando o dia de amanhã. O futuro vem sendo construído lentamente. Tudo isso sem que se pense, sem qualquer sinal de alerta. O Universo inteiro se move permanentemente e em silêncio. Assim é a Lei da Natureza. Não há como contrariá-la.
O mesmo ocorre com a partida daqueles com quem convivemos. Quando se afastam deixam em seu lugar um silêncio. É da Natureza. Não há como contrariá-la.

13/11/2012

O abandono


Imagens antigas do que um dia
foio nosso presente
O tempo passa no ritmo da nossa pressa. Segunda-feira: hora de levantar, nova semana que chega. Levar os filhos na escola, café magro, trabalho, buscar filhos na escola, almoço, gols da rodada, debates esportivos, trabalho, mercado, cafezinho da tarde, passeio de bicicleta, jornal na tevê, uma música no computador, atualizar e-mails, conferir o blog, o face, filmezinho, sono, sonhos. E já é terça e já chega quarta. A quinta passa que nem um raio. Sexta-feira se anuncia puxando consigo o final de semana. Finaleira do brasileirão, Faustão, Fantástico, alguma bomba eleitoral no final da noite no noticiário regional. E assim vai. Passa o dia, a semana e o mês que vem já bate na porta.
O tempo passa e vai enterrando as coisas que fizemos. As comezinhas esquecemos.  Muitos dos sonhos também ficam para trás. E os dias passam, os meses também. E sai estação e entra estação. Faltam poucos meses para as férias e daqui a pouco as férias já se foram. A voracidade do tempo, porém, não consegue vencer o encanto dos velhos álbuns de fotografias. Aquelas abandonadas fotos, que foram um dia o presente, guardam sorrisos e poses de pessoas que vagamente lembram nós mesmos. 
As imagens se sobrepõem. Não só as impressas. Também aquelas imagens mentais que estão arquivadas em algum lugar do esquecimento e que inadvertidamente se lançam das profundezas. São também capazes de suplantar a passagem do tempo. Sensações, impressões antigas, paisagens, gostos e sentimentos. O tempo também não é capaz de impedir que aflore o sentimento desencadeado por uma bela e velha canção. Por uma voz que um dia foi presente. Por uma melodia que serviu de trilha sonora para um instante significativo ou para uma cena despretensiosa.
Remexer nos velhos baús trás à vida aquilo que muitas vezes abandonamos. Onde andará aquela pessoa que sorri ao meu lado? Parecia tão amiga e sumiu como um agente secreto, levando sabe se lá que tipo de informação a nosso respeito. Quem era mesmo aquela colega de aula, quase que totalmente encoberta pelo gordinho simpático da turma, que esticava o olho sobre minha prova de Português? Onde andará aquela professora que ficou duas semanas somente com a turma não dando tempo de decorarmos seu nome?
E eis que a tevê, por vezes tão alheia às coisas que verdadeiramente nos interessam, também resolveu mexer nos seus estimados baús. Numa dessas tantas novelas, se vale de uma velha canção da Beth Carvalho, de autoria de Eduardo Souto, Danilo Caymmi e Paulinho Tapajós, Andança, como trilha sonora de algum romance. Lembro dela e de uma colega que, tocando seu violão com esmero, lançava sua voz suave valorizando a aula de alguma disciplina no Curso de Letras da FACOS.  “Meu olhar em festa...(me leva amor)/Se fez feliz/Lembrando a seresta/Que um dia eu fiz(por onde for quero ser seu par)”.
O tempo passa e para trás fica tudo o que foi possível fazer. Pensando bem, o que é o futuro senão o reflexo daquilo que um dia se fez. Que graça teria tudo isso se não tivéssemos mantido em algum lugar um baú cheio de imagens, sons, sensações, sentimentos, planos e sonhos?

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09/11/2012

Os Mutantes


Tudo corre, tudo flui, tudo passa. Tudo o que existe agora se transforma logo ali. A realidade de agora não será a mesma realidade daqui a poucos segundos. Nada se repete no Universo. A transformação se dá de maneira imperceptível, ininterrupta e irrevogável. Não há como legislar sobre isso. O poder humano é pequeno diante da magnitude das inflexíveis e inafastáveis leis naturais. 
Os princípios filosóficos expostos até aqui não são obra do colunista. São interpretações livres do que disse um dia Heráclito de Éfeso, que viveu no período compreendido entre 535 e 475 a.C. O filósofo concebia a vida com algo em movimento constante. A passagem do tempo vai transformando a tudo e a todos. 
A impressão de Heráclito vale inclusive para os homens. Muito embora a aparente irredutibilidade de alguns, homens e mulheres são seres mutantes. As experiências vão se juntando de tal forma que o indivíduo hoje é muito diferente do que foi um dia. “Tudo que se vê não é/ Igual ao que a gente/Viu há um segundo/Tudo muda o tempo todo” como diria aquela velha canção do Lulu Santos.