Não me cansava de sentir repulsa sempre que a cena se repetia. Minha visão não havia ainda sido treinada para conceber como natural aquele ataque grosseiro, destrutivo e doloroso. Olhos de criança, virgens de maldade e de experiência, ainda sofriam certa angústia quando os corpinhos destroçados de animais serviam de banquete para as aves de rapina. E isso era comum para quem vivia na beira da RS 030, a Estrada Osório-Tramandaí, especialmente na temporada de veraneio.
Sincas, gordinis, opalas, mavericks e fuscas, as máquinas da época, passavam apressadamente levando famílias numerosas em direção às praias. Nas antenas ostentavam pequenos adornos, bolinhas de isopor coloridas ou, ainda, fitinhas multicores que balançavam graciosamente com a ação do vento. Muitos dos animais, cãezinhos ou gatinhos caseiros, tartarugas, cágados, bezerros ou potros, que inadvertidamente tentavam ultrapassar a rodovia, ficavam no meio do caminho. Atingidos pelos carros, tentavam ainda sobreviver se arrastando até a beira da estrada.
Nem bem fechavam os olhos e uma nuvem de aves escuras, os abutres, que conhecíamos como urubus, começavam a realizar vôos rasantes pelas proximidades. No início um mensageiro, um desbravador, pacientemente acompanhava a morte do bichinho. Vez por outra desferia uma bicada como que conferindo se a vida já havia se esvaído do corpo inerte. O espetáculo, para mim triste e incompreensível, se iniciava em poucos minutos. O bando de grandes aves se apossava do corpinho já sem vida. Em minutos, com bicadas certeiras, separavam a carne dos ossos. Terminado o rápido banquete, restavam alguns sinais do que um dia foi um ser vivo.
O bando, momentaneamente satisfeito, voava baixo, com suas asas enormes, olhando fixamente como que procurando por outro desafortunado. Voavam alegres como que gozando de certa impunidade. Sentia raiva daqueles bichos. Acreditava que destruíam a vida.
Os urubus pela cena macabra que protagonizavam eram malvistos por todos nós. Era um sinal de azar, de tristeza, de morte, de horror. As nuvens negras, que vez por outra passavam sobre nossas cabeças de meninos, eram portadoras de notícias ruins, desoladoras.
Mal sabíamos nós que os abutres são, na realidade, seres que seguem o instinto de sobrevivência. São honestos recicladores. Apenas transformam corpos inertes em alimento. Eles se alimentam da morte porque necessitam disso para sobreviver, seguindo a intransponível Lei da Transformação.
Talvez lá no fundo tivesse esperança de que os corpinhos atingidos pelos fugidios veículos, mesmo que aparentemente mortos, pudessem ser reanimados por alguma força maior. Talvez, impulsionado pela ingenuidade, aguardasse algum milagre, alguma manifestação extraordinária que afastasse aqueles bichinhos da morte.
Com o tempo, nosso olhar sobre as coisas do mundo muda. Aquilo que foi um dia um absurdo pode passar a ser visto como uma manifestação natural. O que foi intrigante passará a ser comum e assim vai. Os olhos se acostumam ao ambiente. O tempo contribui para isso, reduzindo, amenizando, destilando. A crítica vai se tornando mais presente. A percepção mais aguçada.
O olhar se alarga. As possibilidades já não estão mais restritas aos sentimentos infantis.
Fostes no x da questão... Era bem assim que víamos as cenas descritas... lá no Morro do Osso, zona sul da Capital, perto do campinho...
ResponderExcluirValeu. Pelo jeito o sentimento é coincidente em vários locais.
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