Azulejo do Palácio Queluz, Lisboa, Portugal. |
Outros
diziam que quando as águas rareavam, monstros gulosos levantavam-se
e abriam suas bocas enormes e, sem esforço, engoliam todas as
embarcações. Adeus navegação, adeus homens, adeus vida. Enfrentar
as águas rudes do mar nos tempos antigos era uma viagem sem fim.
Sem glória, sem qualquer possibilidade de vitória. Era a viagem
definitiva, sem qualquer possibilidade de apelação. Era quase uma
pena capital. Um suicídio que só os loucos e os desequilibrados
poderiam cometer. Navegar era desprezar a vida. Era correr para a
morte. Era entregar a alma aos monstros e daí jamais ser resgatado.
Imaginemos,
amigo leitor, o temor, a angústia e todos os sentimentos ligados à
insegurança que nossos antepassados enfrentavam quando tinham a
necessidade de se distanciar um pouquinho que fosse da costa. Era
preciso manter os pés na terra. Os mares não podiam ser dobrados.
Eles eram supremos. Não era uma brincadeira para humanos.
Imaginemos
o peso que carregavam em suas costas os navegantes quando um vento um
pouco mais maroto forçava suas embarcações a invadir as águas
sagradas de Poseidon. Um pouco mais ao Norte e o mundo terminava. Um
pouco mais ao Sul e grosseiros seres, dragões com dentes enormes
rasgariam num só golpe o casco de seus frágeis navios, pondo fim a
uma existência, deixando órfãos os filhos no continente e viúvas
chorando a triste sina de não sepultar o corpo do amado.
Dias
de tormento experimentaram aqueles homens vivendo num mundo que
teimava em não se abrir. Que impedia a aventura, que aniquilava o
pensamento de expansão e de conquista.
Felizmente
para a humanidade alguém um dia saiu de um porto e conseguiu voltar.
Alguém que, desafiando o ceticismo de todos os outros, contrariando
tudo o que se conhecia e superando sua própria desconfiança, ousou
em levantar as velas e seguiu léguas e léguas, superando ondas
gigantescas e apavorantes, aproveitando lufadas de vento e calmarias,
e chegou a um destino. E não encontrou monstros gulosos e cruéis,
nem caiu no inevitável precipício que marca o fim do mundo, dos
tempos e o fim de tudo o que existe.
O
coração deste primeiro vencedor certamente disparou quando retornou
ao seu ponto de partida. Com certeza trazia consiga o gosto da
vitória, o gosto doce de quem ousou contrariar o que estava
estabelecido pela maioria e constatou que todos estavam equivocados.
Quanto prazer se espalhou pelo seu cansado corpo e pelo seu renovado
espírito quando encontrou os olhos arregalados de seus familiares e
amigos, que revezavam sorrisos e choro, eis que já não contavam
mais com o seu retorno. Que saudade enorme que sentiram o navegador e
todos os outros daquelas longas tardes, das noites insones e da
incerteza que aquela aventura forjava. Que satisfação por terem
enfrentado e finalmente superado aquela forte angústia que
experimentaram durante a longa ausência. Que vergonha sentia aquele
outro que, solitária e furtivamente, uma vela acendeu em memória ao
navegador que agora ali na frente de todos, se materializava,
alquebrado da luta contra as ondas pesadas, mas ainda vivo.
Talvez
poucas tenham sido as peripécias tão empolgantes quanto vencer a
força do mar bravio com equipamentos absolutamente desprezíveis,
ainda mais quando tudo apontava para a sua impossibilidade. Hoje isso
tudo pode parecer insignificante.Tudo hoje parece corriqueiro e
certo. As incertezas vão ficando no passado.
E,
no entanto, sabe-se que ainda há monstros poderosos que atormentam
aqui e ali. E a Terra não é chata.
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