17/04/2019

O Complexo de Vira-Latas

Barbosa, goleiro brasileiro
 na Copa de 50

A Síndrome do Cachorro Vira Latas ou Complexo de vira Latas foi diagnosticada pelo dramaturgo brasileiro Nélson Rodrigues. Ela atinge o imaginário da população brasileira que tende a acreditar que tudo o que se produz por aqui, tudo o que se faz neste pedaço de chão não apresenta a mesma qualidade do que é feito lá, nos países mais desenvolvidos. Inconscientemente transita a informação de que há um débito permanente que persegue o povo tupiniquim. Assim, se justificam expressões como “isso é Brasil” dita, invariavelmente, depois de algum deslize cometido por autoridade do governo ou mesmo por algum cidadão imperfeito.
Obras inacabadas, políticas públicas capengas, lideranças despreparadas, carências estruturais, dificuldades a torto e a direito são algumas das coisas mais do que corriqueiras registradas por aqui com alguma insistência, o que de certo modo colaboram para que a população carregue permanentemente este sentimento de inferioridade. Paralelamente, somos acossados por ideias nem sempre precisas de que no restante do mundo as coisas funcionam com maior precisão e, assim, as pessoas são mais felizes. É comum, por exemplo, sair da boa de alguém que jamais cruzou o Rio Mampituba afirmações de que “lá nos EUA não é assim” ou “na Europa essas coisas não acontecem”. Às vezes ocorre coisa pior.

Nélson Rodrigues vivenciou, no ano 1950, uma das catástrofes futebolísticas mais significativas da vida nacional. O Maracanã estava cheio. Havia um clima de justificável otimismo. Mais de impensáveis 100 mil expectadores carregavam a certeza de a seleção nacional patrolaria sem dó nem piedade o pequeno e indefeso Uruguai. Apesar do sentimento de superioridade brasileiro, o que se viu no campo de jogo foi outra coisa. O minúsculo e, até ali insignificante adversário, impôs uma derrota acachapante decretando o maior silêncio esportivo que se viu e que perseverou por décadas.
O goleiro Barbosa recebeu toda a carga negativa. Foi amaldiçoado como se fosse o único responsável pela expressiva derrota. Isso que ele era um multicampeão pelo Vasco e pela própria seleção. Sua filha Tereza, em rara entrevista, diz que seu pai sofreu o resto da vida os efeitos da derrota e da incompreensão da torcida brasileira. Morreu pobre e infeliz. "Prometeram mundos e fundos para a seleção de 50. Quando perdeu, não ganhou nada. Meu pai foi crucificado. Não ganhou dinheiro, foi jogado na fogueira. Veja, em 50 não tinha só o Barbosa dentro de campo, eram mais dez jogadores", explica a filha adotiva.
Quase 50 anos depois, uma derrota de 7 a 0 para a Alemanha, novamente no solo pátrio, enterrou a maldição de Barbosa. Como o mundo dá voltas, a poderosa Alemanha, exemplo de superação em tudo o que faz, na última copa deu um vexame extraordinário, caindo na primeira fase. Isso é a Alemanha? Claro que não é bem mais do que isso.
No ano passado o Museu Nacional do Rio de Janeiro, patrimônio de nossa história foi acometido por um incêndio. “O Brasil não cuida de sua história”, “Isso é Brasil”, “Lula e Dilma são os responsáveis”, “todos os governantes têm culpa”, “na Europa isso não acontece” e etc e tal. O fogo consumiu uma parte de nossa história. O fogo consumiu um dos ícones da cultura europeia, a Catedral de Notre-Dame, na França, nesta segunda-feira, dia 15. Os franceses estão de luto. Não se sabe ainda o que causou o incêndio. Os investigadores estão debruçados sobre o caso. A princípio não foi um incêndio criminoso. O coração da capital francesa sucumbiu ao fogo. Resta agora a reconstrução. Milhões de Euros já foram arrecadados em campanhas capitaneadas pelo governo francês e por empresários preocupados em recuperar o símbolo da cultura europeia.
Os acontecimentos demonstram bem que fatalidades acontecem pelo mundo afora. E, se não somos privilegiados por Deus, como cantavam os ufanistas dos anos 40 e 50 e mesmo Jorge Benjor (que replicou a ideia anos depois em País Tropical), também não nos cabe a carapuça que, muitas vezes, intuitivamente desejamos usar. As mazelas que vivenciamos aqui são nossas. Mas, com alguma certeza podemos afiram que não são as piores coisas que ocorrem neste vasto latifúndio.

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