30/10/2019

Do encantamento à seriedade


Simplicidade- Há certo encantamento quando a infantilidade ainda está presente. O tempo passa e a magia vai sumindo aos poucos. Em regra, os anos acumulados vão progressivamente modificando os hábitos. Os sabores da maturidade nem são mais os mesmos da meninice. Outras tarefas, outras preocupações, outros desafios. Compromissos vão se acumulando e, com isso, as coisas que mais davam satisfação na áurea fase infantil vão sendo arquivadas virando, com o tempo, apenas lembranças.
O jogo despretensioso, a brincadeira do recreio escolar que um dia entreteve, o gosto inalcançável do arroz com leite preparado com esmero pela mãe ou por aquela tia especial, que tinha a boa mão para o fogão, o riso fácil, as coisas simples e, muitas vezes, sem sentido, apesar de prazerosas, vão sumindo aos poucos. Na realidade, ninguém se dá conta de que as coisas vão mudando. Simplesmente vão. Vão embora sem deixar muitas pistas. Quando se vê já não fazem mais parte do cenário simples e leve da vida.


Complexidade- A rotina tende a se tornar mais complexa quanto mais o calendário avança. Se a criança carrega a ingenuidade por longo tempo, logo o adolescente já incorporará alguma malícia, o jovem alguma inventividade e o adulto a improvisação necessária para enfrentar os obstáculos que aparecerem. Cada etapa vai cobrar, portanto, o desenvolvimento de características específicas para driblar as exigências do período. O avanço no processo vai reduzindo a carga da simplicidade e aumentando a complexidade. Viaja-se da ingenuidade à dureza, da leveza para a seriedade.

Instantes- Ocorre que, muitas vezes, o indivíduo transita por todos os setores da existência e, ao chegar no final da caminhada, constata que vivenciou muita complexidade e pouca simplicidade. E aí começa a declamar o poema de Nadine Stair, Instantes (que na internet é atribuído erroneamente ao poeta argentino Jorge Luis Borges): “se eu pudesse novamente viver a minha vida, na próxima trataria de cometer mais erros… relaxaria mais, seria mais tolo do que tenho sido… Iria a mais lugares onde nunca fui, tomaria mais sorvetes e menos lentilha, teria mais problemas reais e menos problemas imaginários”.

Epitáfio – Os Titãs, talvez livremente baseados no poema de Stair ou até consciente e descaradamente plagiando a americana, seduziram a plateia com os versos de uma canção composta por Sérgio Britto, onde apresentam um real arrependimento pelas oportunidades perdidas ao longo da vida: “devia ter amado mais, ter chorado mais, ter visto o sol nascer. Devia ter arriscado mais e até errado mais. Ter feito o que eu queria fazer...”.

A graça- A graça e o mistério da existência talvez se encontrem na falta de percepção de que a roda do tempo vai andando sem controle e, inexoravelmente, haverá um esgotamento de forças e um fim para aquela parte da história. Na realidade, o tempo é mera convenção. Ele não existe. Marcar sua passagem é, na verdade, uma tentativa de garantir alguma segurança existencial. É preciso regrar, uniformizar. Se todos estivessem conscientes de que o que importa é a busca pela felicidade, ninguém dispensaria as coisas simples. Não seria, por exemplo, necessário o desaparecimento do encanto, do riso sem motivo ou das pequenas coisas que dão satisfação momentânea. O epitáfio seria diferente. Não seria um dolorido lamento, mas sim uma expressão de gratidão pela vida. Ela, a vida, é séria. Séria demais para ser levada tão a sério, como diria Oscar Wilde.

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