Conta a lenda, que nos chega até os dias de hoje, de que foi por um acidente que surgiu o prato nacional: a feijoada. Dizem que os escravos das fazendas de café, das minas de ouro e dos engenhos de açúcar recebiam de seus senhores os restos dos porcos carneados para consumo da casa grande. A parte nobre ficava com os senhores e a menos nobre, composta rabo, orelhas, patas, pele e um pouco do excesso da gordura era atirada aos famintos escravos, que ferviam tudo com água e feijão.
Confesso que por anos até me deixei iludir por esta fábula tupiniquim. Talvez quisesse, lá no íntimo, homenagear aqueles homens brutos, nossos antepassados, que exploravam sem dó nem piedade outros homens, que de diferentes ostentavam somente a origem e a cor da pele. Mas que, num gesto de desapego, de consideração, se desfaziam do excesso, doando para os desafortunados. Talvez, ainda, quisesse acreditar na criação acidental para homenagear os doídos escravos, privados da liberdade, da dignidade, de seus costumes e de suas famílias, mas, ainda assim, criativos ao ponto de com a soma de alguns restos gerarem um dos orgulhos da nação.
A base alimentar dos escravos africanos na Terra Brasilis do século XVI e seguintes não era uma estrondosa feijoada. Dizem os estudiosos que a colônia vivia uma escassez de produtos alimentícios, devido à monocultura. No entanto, os escravos eram mercadoria cara e careciam de alguns cuidados. A ração era dividida em três partes. O almoço, às 08h da manhã; o jantar, às 13h; às 21 ou 22h, a ceia. O cardápio era pobre, sendo servido invariavelmente angu de farinha de milho ou mandioca, feijão ralo com alguma gordura animal, raras vezes premiado com algum pedaço de carne e laranja, com o objetivo de evitar o escorbuto.
Sabe-se hoje, para desilusão de tantos outros quanto eu, que ingenuamente acreditavam na lenda transmitida de boca a boca por séculos, que a origem da mistura de feijão, água e os restos do porco nada têm de acidental. É, aliás, uma rara composição entre os hábitos do velho mundo, a Europa e do novo mundo, aquele dos senhores e dos escravos.
Alguns especialistas em culinária informam que a nossa brasileiríssima feijoada é, na realidade a junção de costumes portugueses. Dizem que são os patrícios que tiveram a feliz idéia de juntar os feijõezinhos com as linguiças, pés de porco e orelhas. Apontam, ainda, o costume dos franceses –sempre eles -, em juntar feijões, porco, ganso, cordeiro e pato, conforme a estação, no renomado caussoulet. Aqui no Brasil, há registros de anúncios de restaurantes que serviam a feijoada no início do século XVIII, apresentada como feijoada à brasileira.
A feijoada, convenhamos,é bem mais nobre do que supúnhamos. Tem uma inegável origem popular, pelo menos lendária, uma insuspeitável procedência européia e uma inegável boa dose de inventividade nacional. Tanto que Câmara Cascudo, escritor, historiador, folclorista, antropólogo e advogado, ícone da cultura nacional, sentenciou que a fórmula da feijoada está em constante desenvolvimento.
Era bem o que eu suspeitava. Especialmente depois de ser brindado com a feijoada magistral preparada pelo meu amigo e irmão Cláudio Mello, num destes dias frios. Sabor e consistência na medida certa. Nem portugueses, nem franceses. O prazer, porém, não pode e não deve ficar somente comigo. Estas coisas devem ser compartilhadas. E é isto que faço aqui. Se, por acaso, alguém quiser comprovar o que eu disse, me pergunte. Eu sei onde encontrar uma boa feijoada, que pode até nos levar a viajar no tempo e no espaço. Não duvidem!
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