Tudo estava tão parado. Os dias se passavam sem atropelos. Cada um no seu lugar. Todo mundo quietinho. Sem lamentações públicas. Cada um curtindo suas lamentações privadas. Remoendo tudo sem muito alarde. A falta de sobressaltos levava a crer que todos estavam extremamente tranquilos. Essa tranquilidade parecia permanente e insuperável. Não havia riscos, pois o conformismo havia vencido todas as batalhas. As caras de todos, sabemos agora, eram de disfarçado contentamento.
De uma hora para a outra, tal qual ocorre no estouro da boiada, a ordem é rompida. E o que parecia um lago de tranquilidade revela-se um mar tenso, revolto e perigoso. No lugar do conformismo, a insatisfação. Não uma insatisfação qualquer, mas sim uma insatisfação maiúscula. Uma insatisfação que vinha sendo contida e que, aos poucos, foi se libertando.
Tal qual um vírus ou uma bactéria que agem silenciosamente impregnando lentamente o tecido, o movimento foi sendo construído. Eis que somente foi notado quando eclodiu ruidosamente nas ruas. E os dias já não são mais os mesmos. Ruas trancadas, lojas fechadas, portas cerradas, horários de ônibus suspensos. Não em represália às reivindicações, que são justas e necessárias, mas sim pelo medo dos excessos.
Os meninos e meninas que marcham cantando e pedindo apoio pela construção de um país melhor, com menos corrupção, com mais educação, com mais segurança e saúde promovem um espetáculo cívico. A história mostrará que o momento atual é de transformação. Os estudiosos dirão que foi o julgamento dos envolvidos no mensalão, condenados e não punidos, que desencadeou todo este anseio por mudanças. Torcer para que mudanças ocorram é um dever de todos nós que queremos um futuro mais venturoso para os brasileiros.
Nos grandes centros, porém, o movimento cívico, patriótico, tem servido de guarida para um cem número de indivíduos. Escondidos no meio das passeatas, nutrindo sentimentos dos menos nobres possíveis, se aproveitam do afrouxamento da segurança e promovem um espetáculo dantesco. Queima de ônibus, perseguição a jornalistas, incêndio de lixeiras. Atingem alvos inescrupulosamente.
Esta incidência lamentável já está se tornando uma regra. Com isso, mesmo aqueles que se dizem simpáticos às reivindicações vão sendo contrariados. A alegria cívica é substituída pela desconfiança, pelo medo.
Não esqueço o pavor que os dois idosos tinham nos olhos quando o coletivo que se encontravam foi apedrejado e queimado, numa dessas manifestações no Centro do Brasil, na semana passada. Imagino o sentimento de desamparo, de insegurança que sentiram aqueles dois senhores ao enxergar aquela turba raivosa atirando pedras, jogando pesadas barras de ferro nos vidros e ateando fogo nos estofados. Gente assim não constrói um país mais justo, não constrói uma pátria melhor. Quem atenta contra a cidade, não merece respeito.
O crescimento dos atos de destruição está corrompendo o movimento. Se assim continuar, os manifestantes perderão a autoridade moral que os sustenta. Se a violência e o vandalismo venceram esta luta, os avanços - se tivermos, serão mínimos. Torcemos para que esta corrupção que prejudica até os tecidos que parecem mais sãos, seja eliminada. Para o bem do Brasil.
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