Era um garoto que não conhecia os Beatles e nem imaginava que o mundo ouvisse, nem visse as caras e bocas de Mick Jaeger e dos Rolling Stones. Acordava no domingo com o rádio sintonizado na Farroupilha. Seu pai adorava Teixeirinha Amanhece Cantando. O popular cantor gaúcho e sua até então inseparável companheira Meri Teresinha anunciavam seus shows pelo Estado, liam as cartinhas enviadas pelos fãs das mais distantes bibocas do interior gaudério e reproduziam suas inspiradas canções.
O pai não gostava de rádio com baixo volume. Como o sono de criança é pesado, muitas vezes o Tropeiro Velho ou o Tordilho Negro saltavam do rádio e invadiam os sonhos do menino. Talvez algum dia tenha acordado chorando com o Coração de Luto, música triste que narra a morte da mãe do cantor, e que o Flávio Cavalcante, apresentador de um programa de tevê muito famoso naqueles anos, maldosamente ousou chamar de churrasquinho da mamãe. Não precisa dizer que os gaúchos, que sempre gostaram de uma peleia, de uma escaramuça, quase pegaram nas armas em desagravo ao Vítor Mateus Teixeira. Não sei se ele se desculpou. Sei que alguns tempos depois a história caiu no esquecimento. Como caiu também no esquecimento o Teixeirinha que morreu de desgosto, abandonado pela Meri. Esta malvada abandonou o velho cantor e saiu pela vida atrás de um astrólogo, adivinho, guru ou algo assim, chamado de Ivan Trilha.
Mas, eu não queria falar de nada disso. O que eu queria mesmo contar é uma tolice qualquer feita nos tempos em que o menino ainda ouvia os sons vindos do rádio de seu pai. Não é um fato homérico nem uma epopeia, mas sim um evento corriqueiro, fruto da sua infantilidade e de seu instinto. O caso ocorreu ali na Vila das Pererecas, hoje conhecida como Vila Popular ou Loteamento Popular, ao lado da RS 030. A casa era germinada. Uma parede separava a casa, habitada por duas famílias. Do outro lado da casa morava uma família que tinha umas três ou quatro menininhas. Tinham pouca diferença de idade.
Um dia, daqueles em que o vento osoriense insiste em descabelar os cabeludos, em levantar as saias das moças, e coisa e tal, o menino ousou sair para a rua. Queria brincar. Se divertir com a gurizada de sua idade. Notou que na janela da vizinha se encontravam várias crianças. As menininhas estavam ali e um amigo seu, o Mauro. E riam e chamavam-no. E disseram para que ele entrasse. Só que, malvados, não abriam a porta. Ele tentava entrar, mas a porta estava chaveada. Voltou à janela e eles se divertiam. Riam descaradamente. O menino foi ficando um tanto quanto irritado. Olhava aqueles rostinhos alegres, abrigados do vento e ainda por cima rindo como se ele fosse um palhaço. E o ventinho aumentou um pouco e começou a gelar seus pés, metidos num havaianas velho talvez com um prego segurando uma das tiras.
E o vento não parava. Ia mesmo se tornando mais forte e mais frio. E ele ali sendo inapelavelmente gozado. Fez até uma cara de choro, mas se segurou. Não poderia pagar um mico na frente das menininhas. Mesmo que o coração estivesse saindo pela boca, mesmo que o rosto estivesse vermelho, mesmo que os dentes estivessem apertados de raiva. Não, não poderia fraquejar.
Num lance rápido, uma lufada de vento forte soltou uma das folhas da veneziana e ela bateu na cabeça do menino. E o levou ao nocaute. Sentiu uma dor terrível. Mas dor maior foi olhar para seus amigos e vê-los todos numa risada frenética. Tomado de tanta fúria, não pensou um instante e desferiu um murro com a mão esquerda em direção ao Mauro. Esqueceu que entre eles havia uma vidraça. As caras sorridentes se transformaram em rostos apreensivos. Quando puxou de volta a mão viu que ela tinha pedaços de vidro grudados na pele e uma boa quantidade de sangue pingava no chão. Ali sentiu que tinha cometido uma idiotice.
Chorando, saiu de cena correndo para casa. Achou mesmo que todo seu sangue sairia pela sua mão e morreria. Sem nada entender, sua mãe tratou da mão com cuidado. Depois, infelizmente, foi ter com as vizinhas. Naquele dia o menino levou alguns safanões. “Isto é pra aprender a não fazer idiotices. Isto é para aprender a não fazer fiasco. Isto é pra aprender a não dar prejuízo”.
Chorou o quanto pode. Por fim, envergonhado, foi dominado pelo sono. Imaginou que tivesse dormido por uns dois dias ou mais. Despertou, porém, alguns minutos depois, quando as vizinhas chegaram para visitar o doente. “Não leva a mal, vizinha, é só uma criança”, disse a dona da vidraça quebrada. “Não briga mais com ele. Ele não teve culpa”, completou.
Depois de recuperado, ainda magoado com a zoação, cortou das suas relações o Mauro. Quanto às meninas, o melhor que pode fazer foi evitar passar pela frente da casa, pois morria de vergonha dos sorrisinhos de canto de boca.
Crescido e experimentado, vez por outra o antigo menino olha para as marcas de sua mão e pensa que quebrar vidraças, mesmo que que se tenha alguma razão, pouca coisa resolve.
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