Se
vivesse no mundo antigo, talvez erguesse um totem em homenagem à
mandioca. Ou, se algum talento tivesse, poderia mesmo conceber um
longo poema onde destacaria a alvura e firmeza de seu corpo
contrastando com sua pele rugosa. Sim, compreendo que tudo isso pode
parecer estranho. Nos dias de hoje, no entanto, melhor nem pensar em
tótens e poemas. Já há iniciativas estranhas demais em nosso meio.
Seria mais uma que se perderia no meio de tanta informação. Mas, ao
menos explico: a mandioca teve papel importante na minha formação.
Nos
primeiros anos de vida, então, nem se fala. Posso dizer mesmo que se
não fosse a mandioca, mais especificamente a sua farinha, aliada à
inventividade de minha mãe eu não estaria aqui escrevendo este
texto estranho.
Ocorre
que, naquela época, a situação era muito ruim. Vivíamos a
ditadura. Era proibido falar que estava ruim. Mas, estava. Minha
família vivia as agruras dos sem-passado e dos sem-futuro. Fazíamos
parte do contingente que não decidia, que vivia sua vidinha sem se
meter nas decisões dos grandes. Meu pai e minha mãe eram
brizolistas. Viviam em silêncio a saudade do caudilho exilado no
Uruguai. Sonhavam que, com sua volta, o país melhoraria e os milicos
seriam obrigados a ensacar suas baionetas. E a vida seria diferente
para os pobres.
Apesar
de hoje saber que não existem milagres, que tudo o que se diz de
fantástico não passa da conjunção de fatores presentes nas leis
naturais, ainda me surpreende a capacidade de improvisação que teve
minha mãe para manter aquelas bocas. E, chego a acreditar mesmo que
ela tinha poderes sobrenaturais.
Um dos
seus milagres que se repetia diversas vezes durante aqueles longos
meses de carência era a multiplicação dos peixes. Eis que uma
minúscula latinha de sardinha Coqueiro ou Gomes da Costa era
dividida em quatro ou cinco pratos sobre o arroz. O azeite era jogado
sobre tudo aquilo dando um sabor extraordinário. O segredo, porém,
vinha logo depois. Para aumentar um pouco o volume, algumas
colheradas de farinha de mandioca garantiam que não faltaria
alimento para todos.
Naqueles
tempos de racionamento, a farinha de mandioca era pau prá toda obra.
Houve dias em que faltava tudo. Menos farinha, café e açúcar.
Dizia a mãe que os escravos quando nada tinham para comer se
deliciavam com moló. E era o que fazíamos, diante daquele argumento
invencível. Jogávamos umas duas colheres grandes de farinha no
nosso café bem adocicado. O gosto não era dos melhores. Mas,
dormíamos com as barrigas cheias. Além disso, experimentávamos
certo orgulho em provar uma receita que manteve homens honrados,
cansados e sofridos em pé.
Contrariando
o sonho de meus pais, Brizola voltou ao Brasil nos anos 80. encontrou
um país mudado. Seus longos discursos e suas certezas na valorização
da educação não foram suficientes para vencer a máquina montada
pela Família Marinho, que preferia entregar o país a um certo
Caçador de Marajás. O Caudilho gaúcho jamais atingiu sua meta de
governar o país.
Os
dias passaram e estamos aqui vivos. Quando lembro dos das agruras que
ficaram para trás não deixo de experimentar um pouquinho da ternura
que minha mãe mantinha sempre, independentemente da ocasião. Sua
doçura e dedicação convenciam de tal forma aliviando nosso
sentimento de ansiedade e de descrença no futuro. Suas palavras e
ações nos davam a segurança de que poderíamos ser felizes mesmo
que em nossa casa não restasse muito mais do que uma boa dose de
farinha de mandioca, arroz e uma latinha de sardinha. Ou um café bem
adocicado e algumas colheres de farinha para, num ato quase
litúrgico, homenagear todos os outros que sofreram a violência dos
desgraçados tempos de falta de liberdade.
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