12/03/2015

Autor e Obra

A discussão bem que não é nova. Mas, é interessante. Intrigante até, diria.
Recebi dia desses um e-mail de uma querida amiga. Alertava para o caráter imoral de alguns dos nossos imortais compositores brasileiros endeusados pela sua produção musical. Como todos os nomes da extensa lista são velhos conhecidos, me propus a ler a proposta apresentada no texto. O engraçado é que todos os indivíduos citados fazem parte do meu repertório. E, além disso, sem exceção estão mortos. E o texto era direto. Sua preocupação era ressaltar o que de ruim cada um apresentava na sua passagem por aqui. Um deles foi destacado pela promiscuidade de sua vida pessoal. Pela sua desatinada luta em busca do prazer. O vínculo com o álcool e com drogas mais pesadas serviu para adjetivar aquele encantador roqueiro, tão presente nos bares e nas festas, quando alguém inspirado pela lembrança de sua figura grita: - Toca Raul! O desapego para com a vida e os vícios que destruíram a mais bela das nossas vozes também foi lembrado. E assim sucessivamente foi o texto qualificando negativamente e derrubando os ícones da música tupiniquim. Não ficou nenhuma peça em pé no tabuleiro.
E terminava o texto questionando se estes autores seriam alguma espécie de exemplo para as novas gerações.E mais, exortava a impor um rotundo silêncio em relação a seus nomes e suas obras.
Confesso que já havia questionado se a vida do autor contamina a obra. Ou, se as pretensas más inclinações de algum modo são transferidas através dos versos para o ouvinte. Enfim, o quanto da vida pessoal do compositor interessa? Pelo texto apresentado no e-mail, interessa e muito. Caberia a nós, interessados em manter a moralidade e o bom exemplo promover uma limpeza. Riscar seus vinis (se ainda existirem), quebrar ao meio seus CDs de forma a não serem mais recompostos e deletar seus arquivos dos nossos computadores, para que a praga fosse firmemente debelada. Claro que o e-mail não propunha medidas tão drásticas. O exagero é meu.
Mas, no fundo foi o que eu senti no momento. O sentimento de que alguém estava exagerando e muito nesta história. E imaginei um exercício por demais complicado. Quando o indivíduo fosse adquirir um quadro para a sua sala teria que buscar uma descrição sobre o ajustamento do pintor às normas morais. Teria ele ingerido alguma substância enquanto lançava mão de seus pincéis e dava formas às paisagens inseridas pelas hábeis mãos na tela branca? E aquele consagrado cineasta estava dirigindo aquela cena com toda a sua lucidez. Ou algo de loucura, de paixão, de arrebatamento, de promiscuidade crescia em sua mente imoral?
Assim, viveríamos procurando nas biografias dos compositores, dos músicos, dos arranjadores, dos cantores, dos diretores, dos escritores, e de todos produtores da arte, os valores morais mais adequados à nossa boa formação. Esta tarefa seria tão difícil, tão complicada que tudo se transformaria em algo suspeito. E tudo ficaria mais sério do que é. E não teríamos mais tempo para ouvir uma música, para ver um filme ou ler um livro sem certa sisudez e cansaço. Estaríamos todos muito empenhados em perseguir a verdade por trás da obra e os impulsos que levaram aquele autor a dizer o que diz.

Melhor ouvir a canção, ver o filme, ler o livro, observar a pintura, sem tantas preocupações. Melhor impor certa leveza. Melhor suprimir da vida algumas paranoias.

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