06/06/2017

Jogando no Campinho

Quando era ainda um piá, vivia correndo pelos campinhos atrás de uma boa partida de futebol. Havia ainda na cidade vários campos. Não eram tantas as casas e nem tantos edifícios. Nossa exigência também não era muito grande.  Um terreno baldio, desses de pouco mais de 12m x 30m já era suficiente para abrigar uma gurizada disposta a dar uns chutes, fazer uns gols e gastar alguma energia que se revelava num caldo que escorria rosto abaixo ensopando a velha camiseta e até o calção puído.
O tamanho do campo variava de acordo com o número de jogadores. Goleirinha de um ou dois passos, feita de chinelos havaianas ou de latas de azeite ou, ainda, de qualquer objeto que pudesse demarcar as traves imaginárias, quando se juntavam quatro, cinco ou seis. Todos na linha. O goleiro jogava com os pés também: era o goleiro-linha.
Se o número de garotos fosse maior, o jogo crescia de interesse e de organização. Um dos times tirava a camisa para não dar confusão. Se o frio era demais, esperava-se um pouco até o corpo esquentar. Depois de um tempo, fazia-se um sorteio para ver quem tirava a camisa. Manter a camisa no corpo era uma vitória. Vibrava-se como se um gol fosse marcado. Nos dias quentes, a vitória era daquele que se despia.
Havia, porém, alguns problemas. Vendavais não impediam o jogo. Mas, ventos muito fortes com o céu coberto por nuvens muito fechadas era um problema. Chuvinha tranquila era festa. Mas, se algum relâmpago surgisse no céu, era uma correria só. Não era incomum algumas mães aparecerem na beira do campo armadas com varinhas nas mãos. Acabava o jogo. Não satisfeitas em manter a integridade física dos seus ainda se achavam na obrigação de mandar todos os piás para casa. Isso, no entanto, era raro.
O que mais impedia a ação da gurizada era chuva intermitente. Aqueles dias enormes quando o sol parece zangado e parece abandonar o céu em definitivo. Chegava a dar um desânimo na gurizada quando iniciava uma daquelas chuvas de inverno que se alongam preguiçosamente deixando transparecer que jamais irão embora. Olhar pela janela toda aquela água caindo do céu era francamente doloroso.
Mas, quando passava a chuva, era banho na certa. Se a água ficasse empoçada no campinho era uma festa. Jogava-se a bola sempre na direção da lagoinha e começava a disputa. Mais importava o tombo e a molhaçada. Chegar em casa encharcado dos pés à cabeça era uma glória.
Havia campinhos me todos os bairros. E os meninos eram dominados por uma espécie de inconsciente coletivo. Corriam para o campo na mesma hora. Voltavam talvez na mesma hora. Cansados, sujos, esfomeados, satisfeitos pelos gols que fizeram ou pelos que puderam evitar. A vitória ou a derrota era o que menos importava. Importava que amanhã o dia estivesse bom e, assim, a bola rolaria de novo numa nova batalha. Torcia-se para que São Pedro ajudasse.

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* Por mais improvisado que seja, o futebol de campinho tem um conjunto de  regras. Impô-las é um problema, eis que, como em qualquer gupo humano, há aqueles rebeldes que não aceitam ou, ainda, tentam mudar as consagradas normas. A seguir algumas das convenções, sábias, que regram as infindáveis partidas no campinho:

1) Do equilíbrio técnico: a) os dois melhores jogadores não podem atuar no mesmo time;
    b) o pior jogador vira goleiro;
    c) se ninguém aceita ser goleiro adota-se o rodízio;
   d) o goleiro deve demonstrar interesse em defender a bola. Caso fique comprovado que facilitou a vida do adversário para fugir da goleira será punido ficando mais um gol no arco. 

2) Da definição das equipes: dois dos jogadores disputam o par ou ímpar. O que vencer começa escolhendo um jogador; o outro escolhe depois. Ganhar no par o ímpar pode determinar a vitória no jogo, especialmente se há entre todos algum menino com muita qualidade técnica;

3)  Do uniforme: a) Um time joga com camisa ou outro sem;
    b) somente será permitido calçado ou chuteira se a maioria tiver. Caso contrário, todos devem jogar de pés descalços;  

4) Da arbitragem:  a) Se houve algum adulto disposto por perto poderá arbitrar a partida;
  b) se não houver, o jogo se realiza sem juiz;
 c) as dúvidas serão resolvidas no grito ou, em casos especiais, após empurrões e tapas. Socos são terminantemente proibidos. 
 d) durante as discussões ficam vedadas quaquer referência às genitoras e irmãs dos jogadores(mesmo que haja fundada razão para tal);

5) Das disposições gerais: 
- Os piores jogam na defesa:
- Quem chuta a bola para longe tem que buscar;
- O dono da bola joga no time do melhor jogador;
- É vedado deixar o dono da bola como último jogador escolhido;
- Se o pai ou familiar do dono da bola estiver no local deve recair sobre ele o trabalho de arbitragem;
- Dois num é falta:
- Quando a bola sair terá prioridade em cobrar lateral ou escanteio aquele que pegar a bola primeiro e gritar "é nossa".
- O jogo termina quando todos estiverem cansados;
- Poderá ainda terminar quando o dono da bola for chamado pelo seu pai ou mãe;
- Não importa o resultado até então, se as equipes aceitarem que quem fizer o próximo gol ganha, assim será. Deste acordo não caberá  recurso. 
  

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