Nesses dias de luta aguerrida, de tentativa desesperada de construção
e desconstrução de verdades, de vitórias e derrotas, de sonhos, de
sobressaltos, de aparente caos e de paraísos prometidos, acorda-se
como se um porre gigantesco tenha acometido mesmo os abstêmios.
Gente que se manteve por anos de boca fechada saiu por aí gritando
suas palavras de ordem, repetindo mantras recém-descobertos
prometendo salvação a quem nem desejava ser salvo. O barulho foi
grande. Os resultados das urnas são conhecidos. Os efeitos não.
Para muitos restou uma dor na alma, uns familiares que se tornaram
distantes, uns amigos que nem amigos eram e que menos amigos ainda se
tornaram. As percepções são individuais, é claro. Mas, não se
duvide do tamanho do trauma que pode se operar nos relacionamentos.
Para alguém, o bolo saboroso da tia amada, que traiu a confiança e
se bandeou para o outro lado, perdeu o gosto. Tanto quanto o bolo, a
tia perdeu a graça. A confiança se afastou. Talvez volte, talvez
não.
Para outros, no entanto, seguiu-se o contentamento e a satisfação
de ganhar, de marcar o gol que faltava. Mas, ainda assim, alguma
fratura apareceu aqui ou ali, algum arranhão, mesmo que
imperceptível no calor do jogo pode ainda ser encontrado quando a
poeira for descendo e a realidade for se impondo lentamente. Não há
festa que dure para sempre. Ela, por melhor que seja, sempre tem hora
para acabar.
Alguns amigos virtuais, aos 45 minutos do segundo tempo, quando o
jogo já estava encerrando, foram às redes sociais lembrar que,
apesar dos ataques a torto e a direito, não desejavam perder os
amigos nem os familiares. Que, durante o processo, nada mais faziam
do exercer o legítimo direito ao posicionamento político. O que
muitos não puderam dizer, porque encontravam-se em estado de
fascinação e nem notaram, é que o tom foi carregado demais. O
exagero sempre cobra a conta.
O certo é que no calor dos acontecimentos a tendência é se dizer
mais do que deve ou se quer, normalmente num tom mais elevado do que
o de costume. Os discursos vieram ácidos, chocantes, no mais das
vezes desrespeitosos. É líquido e certo que o processo de
comunicação atual emparelha mentira e verdade. Importa o resultado.
Importa o impacto. O desejo é eliminar o outro, acabar com o
adversário, extinguir o inimigo. Quem estiver na mira que se vire. A
artilharia é pesada. Coisa séria vira zoação. Meia dúzia de
palavras cristalizam e se multiplicam como torpedos em campos de
guerra.
Na democracia, conviver com a oposição, com o outro é o que
legitima o vitorioso. Assim, reconhecer o adversário é papel
fundamental neste processo. Da mesma forma, reconhecer os resultados
e legitimar o vencedor garantem a grandeza de quem não teve sucesso
imediato, mas defendeu uma ideia defensável. Como se diz
popularmente: é uma via de duas mãos. Respeito é a base da
convivência.
Não há dúvidas de que o processo eleitoral revelou o lado
escondido de muita gente. O ódio, a fascinação, a
irresponsabilidade, a falta de compaixão, o desejo pela vitória.
Agora, que o tumulto terminou, “bora lá esconder os monstros de
novo” e tudo volta ao normal. A vida segue seu ritmo. Outras lutas
virão. Outras decepções. Outras vitórias. A tia volta a fazer o
bolo de novo e postar a receita no Facebook, o tiozinho volta a
mandar mensagem de Chico Xavier e de Jesus. São novos os dias.
Outros dias. E os grupos de família voltam ao emocionante tempo em
que todos davam “bom dia!”.
Nenhum comentário:
Postar um comentário