O fedor
de podre era muito forte na vila. Nos dias de vento, então, era
quase insuportável. Chegava a arder o nariz. Vinha do matadouro. Era
assim que o pessoal chamava o frigorífico, que abastecia a cidade
com carne bovina. Os moradores da vila, famílias pobres com muitas
bocas a alimentar, ali o que mais adquiriam era alguma carne de
segunda com muita gordura, coalheiras, tripas, fígados e rins.
Diziam que o cheiro vinha do sangue e dos restos dos animais mortos.
Atrás
do fétido matadouro, no entanto, havia um vasto mundo inexplorado.
Os olhos da molecada brilhavam pensando em conquistar aquele
território. Um belo campo com açudes de águas cristalinas. Diziam
que ali havia peixes graúdos às toneladas.
E foi
para este lugar que saímos. Eu o Sérgio, meu irmão, nos aventuramos numa
pescaria de final de tarde de primavera. Ao passar pela cerca que
separava os dois mundos, fomos alertados por um funcionário do
matadouro: muito cuidado com os bois brabos que estão no fundo da
área! Ficamos apreensivos, mas não havia como abortar a missão.
Os caniços estavam prontos e as minhocas aguardavam numa velha lata
de leite ninho, previdentemente cobertas por um punhado de areia
úmida.
No
começo somente pequenos lambaris brincavam de roubar a isca. Assim
ficamos por muito tempo sem pegar unzinho qualquer. Porém, como reza
o conhecimento popular, quando o sol foi baixando a peixaredo começou
a fazer a nossa festa. Era só jogar o anzol e levantávamos com
sofreguidão traíras enormes, carás testudos, joaninhas que
brilhavam quando em contato com o sol. Até os lambaris de bom
tamanho apareciam.
Tínhamos
feito previamente fieiras de embiras e ali íamos perfilando os
peixinhos. A pescaria estava emocionante. E o sol, lentamente, foi se
escondendo. O gado foi chegando cada vez mais perto do açude. E cada
vez dava mais peixe. E foi crescendo nossa atenção em relação ao
avanço dos animais. O medo foi aumentando. Lembramos que corria na
vila a história de que um daqueles bois, talvez um preto com uma
mancha na testa e chifres grandes, era muito bravo. Alguém tinha
dito que era um verdadeiros assassino. Tinha corrido atrás de um
homem e só não o matou a chifradas porque ele era muito veloz.
E eles
continuaram perigosamente se deslocando em nossa direção. Porém, a
emoção da pescaria era muito mais forte. Nunca tínhamos visto nada
igual. Se fôssemos dados a mentir não conseguiríamos descrever o
quanto era produtiva a pesca naquele final de tarde. As traíras, os
carás, as joaninhas e os lambaris continuavam se oferecendo
graciosamente e inapelavelmente eram retirados da água pelos nossos
caniços. Os bois já miravam nossos olhos. Não tínhamos
escapatória. Era pegar as fieiras, os caniços e empreender a melhor
das corridas que pudéssemos. E assim fizemos. Fugimos sem mais
olhar o avanço da boiada.
Como
era menor e com menos destreza, acabei ficando para trás. Vi ao
longe meu irmão passar pela cerca. E o safado, com o objetivo de
contribuir para meu sucesso, ainda gritava: “corre que o boi vem
vindo”. Apavorado, cheguei a cair no chão. A fieira arrebentou e
os peixinhos caíram todos. Como não tinha o que fazer, dobrei minha
camisa branca Volta ao mundo e guardei ali todo o produto da pesca.
Os peixes estavam todos envolvidos em uma fina camada de barro. Como
não havia onde limpá-los, assim os levei até em casa e rapidamente
os entreguei a uma mãe apavorada.
Depois
de alguns xingamentos por ter embarrado a camisa, minha mãe se deu
ao trabalho de limpar aqueles peixes, que pareciam tão grandes
quando levantados da água e agora se revelavam minúsculas
criaturas. Depois de limpos, lavados e passados na farinha de trigo
foram jogados numa velha frigideira com azeite quente. O cheiro se
espalhou pela casa abrindo ainda mais nosso apetite. Os peixinhos
crocantes foram rapidamente consumidos com pedaços de pão caseiro e
com uma xícara de café preto.
O dia
terminava de forma gloriosa. Um rápido banho de bacia (não havia
água canalizada no local) e, depois, um sono reconfortante. Porém,
no meio da noite, meu sonho foi invadido. E lutei durante horas
contra o medo que me impunha um certo boi preto, com uma mancha na
testa. O boi assassino corria atrás de mim. Era muito forte e veloz.
Minhas pernas curtas travavam, meus pés não saíam do chão. Olhava
deseperadamente e ele chegando cada vez mais perto. Meu corpo todo
travado pronto para receber o impacto dos grande chifres que vinham
apontando em minha direção. Meus peixinhos saiam da fieira em fila
indiana e se colocavam ao meu lado prontos para assistir à minha
queda. Seriam as pequenas e silenciosas testemunhas do meu fim.
Olhavam para os meus olhos apavorados. E riam do meu medo.
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