25/07/2014

Outros tempos

Título "Puxando Lata III",
de Ivan Cruz
Nos tempos de infância, a lata antiga do Leite Ninho me causava certo fascínio. Aquele desenho dos pássaros confortavelmente instalados dentro de um ninho, sendo alimentados pela mãe, aos meus olhos era algo de um beleza poética indescritível. Hoje sei que tudo não passava de um mero logotipo, uma marca que identificava uma empresa. Mas, na minha visão de então, era bem mais que isso. Achava aquilo tudo muito mágico.
Gostava tanto que, de vez em quando, assaltava a latinha amarela. Obviamente de modo furtivo, longe e acoberto das vistas de minha mãe, é claro. Sorrateiramente, temendo ser pego em flagrante, surrupiava a lata, abria sua tampa evitando qualquer barulho e, finalmente, do seu interior emergia uma colher cheia de leite em pó que era solenemente levada à boca. Os farelinhos grudavam no céu da boca. E o sabor lentamente ia se espalhando.
Confesso que nem sei ao certo o que era melhor: o sabor do leite ou o deleite em cometer aquela pequena transgessão. Em minha defesa posso hoje dizer com total segurança que a conduta descrita bem que pode ser considerada um furto famélico. Porém, é importante ressalta, também, que minha mãe não tinha domínio das ciências jurídicas. Logo, se fosse flagrado naquela atitude suspeita não teria direito a recurso, nem defesa.
Naquele tempo, sem saber, estávamos no topo da moda. Éramos precursores naquilo que hoje se alardeia como uma atitude correta, desejável e positiva. Não que os furtos famélicos fossem tão comuns assim na vila. Ocorre que, depois de consumido o conteúdo, a lata de leite não era jogada no lixo. Virava brinquedo. Ou, para ser mais explícitos: sem saber, reciclávamos. Não havia ainda esta consciência ecológica de hoje. O que fazíamos não era movido pela preservação ambiental. Era pura necessidade. Os brinquedos custavam muito caro. Não cabiam nos orçamentos minguados de nossas famílias. E tínhamos que brincar. Era uma imposição.
Lembro que nos dias de chuva, sem trovões ou vendavais, era comum as mães liberarem seus filhos para correr pelas ruas enlameadas puxando soberbos rolinhos de lata. A fabricação dos brinquedos era bem simples: abria-se um furo na tampa e na parte de baixo da lata, passava-se um arame e depois engatava-se um barbante unindo-o ao arame. No interior da lata colocava-se areia para que o rolo ficasse um pouco mais pesado e transitasse com a maciez necessária nas nossas rodovias imaginárias. Coisa singela. Mas, quebrava o galho.
Mas a lata de leite não servia somente para isso: transformava-se em telefone e pé de lata. Também brinquedos singelos, mas extremamente populares entre os meninos e meninas daqueles tempos de dinheiro curto.
Não só a lata usada terminava nas mãos da gurizada. O processo de reciclagem forçada proporcionava um destino também aos pneus velhos e imprestáveis de bicicleta ou de carros. Eram nossos veículos sendo empurrados com orgulho como se fossem carros novos em folha. De nossas bocas saiam os barulhos do motor e a buzina. Não havia tempo ruim. Fazíamos verdadeira maratona empurrando aqueles pneus sob sol ou chuva.

Era um tempo de muito pouco recurso, mas de uma infindável criatividade. E isso nos dava muita satisfação.  

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