Título "Puxando Lata III", de Ivan Cruz |
Nos
tempos de infância, a lata antiga do Leite Ninho me causava certo
fascínio. Aquele desenho dos pássaros confortavelmente instalados
dentro de um ninho, sendo alimentados pela mãe, aos meus olhos era
algo de um beleza poética indescritível. Hoje sei que tudo não
passava de um mero logotipo, uma marca que identificava uma empresa.
Mas, na minha visão de então, era bem mais que isso. Achava aquilo
tudo muito mágico.
Gostava
tanto que, de vez em quando, assaltava a latinha amarela. Obviamente
de modo furtivo, longe e acoberto das vistas de minha mãe, é claro.
Sorrateiramente, temendo ser pego em flagrante, surrupiava a lata,
abria sua tampa evitando qualquer barulho e, finalmente, do seu
interior emergia uma colher cheia de leite em pó que era solenemente
levada à boca. Os farelinhos grudavam no céu da boca. E o sabor
lentamente ia se espalhando.
Confesso
que nem sei ao certo o que era melhor: o sabor do leite ou o deleite
em cometer aquela pequena transgessão. Em minha defesa posso hoje
dizer com total segurança que a conduta descrita bem que pode ser
considerada um furto famélico. Porém, é importante ressalta,
também, que minha mãe não tinha domínio das ciências jurídicas.
Logo, se fosse flagrado naquela atitude suspeita não teria direito a
recurso, nem defesa.
Naquele
tempo, sem saber, estávamos no topo da moda. Éramos precursores
naquilo que hoje se alardeia como uma atitude correta, desejável e
positiva. Não que os furtos famélicos fossem tão comuns assim na
vila. Ocorre que, depois de consumido o conteúdo, a lata de leite
não era jogada no lixo. Virava brinquedo. Ou, para ser mais
explícitos: sem saber, reciclávamos. Não havia ainda esta
consciência ecológica de hoje. O que fazíamos não era movido pela
preservação ambiental. Era pura necessidade. Os brinquedos custavam
muito caro. Não cabiam nos orçamentos minguados de nossas famílias.
E tínhamos que brincar. Era uma imposição.
Lembro
que nos dias de chuva, sem trovões ou vendavais, era comum as mães
liberarem seus filhos para correr pelas ruas enlameadas puxando
soberbos rolinhos de lata. A fabricação dos brinquedos era bem
simples: abria-se um furo na tampa e na parte de baixo da lata,
passava-se um arame e depois engatava-se um barbante unindo-o ao
arame. No interior da lata colocava-se areia para que o rolo ficasse
um pouco mais pesado e transitasse com a maciez necessária nas
nossas rodovias imaginárias. Coisa singela. Mas, quebrava o galho.
Mas a
lata de leite não servia somente para isso: transformava-se em
telefone e pé de lata. Também brinquedos singelos, mas extremamente
populares entre os meninos e meninas daqueles tempos de dinheiro
curto.
Não só
a lata usada terminava nas mãos da gurizada. O processo de
reciclagem forçada proporcionava um destino também aos pneus velhos
e imprestáveis de bicicleta ou de carros. Eram nossos veículos
sendo empurrados com orgulho como se fossem carros novos em folha. De
nossas bocas saiam os barulhos do motor e a buzina. Não havia tempo
ruim. Fazíamos verdadeira maratona empurrando aqueles pneus sob sol
ou chuva.
Era um
tempo de muito pouco recurso, mas de uma infindável criatividade. E
isso nos dava muita satisfação.
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