Lá
vou eu de novo contar histórias do século passado. Mais
precisamente dos anos 70. Não sei precisar o ano. Mas, acho que era
1974. Tinha onze anos de idade. Estudava numa escola particular da
cidade, o Colégio Conceição. Vindo de uma família muito pobre,
não tinha dinheiro para a mensalidade. Na realidade, nem para o
material obrigatório tinha. Foi graças a uma bolsa de estudos
concedida pelo Deputado Romildo Bolzan que acabei por ali. Não havia
como negar que era um intruso naquele ninho. Com exceção de dois ou
três bolsistas, todos os demais colegas faziam parte das mais
tradicionais famílias da cidade.
Mesmo
que os colegas fossem extremamente gentis, não nego que sentia na
pele as diferenças causadas pelo abismo econômico que nos separava.
O desnível aparecia especialmente na hora do lanche. Tão logo
soava o sinal de intervalo, meus colegas partiam como carros de
corrida em direção ao barzinho da Tia Ana. Ali se fartavam com
prensados acompanhados de Pepsi (a Coca não mandava ainda neste
chão). Em regra, eu e mais um e outro, ficávamos na sala de aula
mexendo nos cadernos e livros, como se alunos aplicados fôssemos,
disfarçando uma falta de grana que impedia de matar a fome naquele
instante. Vez por outra minha previdente mãe forçava que levasse na
pasta uma banana ou um pedaço de pão caseiro com margarina.
Confesso que tinha vergonha quando chegava a hora do recreio e me
obrigava a abrir a bolsa e de lá tirar aquelas iguarias tão
diferentes das dos meus colegas. Coisa de guri!
Acredito
que muitos dos colegas nem notavam nossa exclusão. Não os culpo por
isso. A meninada nem sempre tem um olhar atento, especialmente em
relação às coisas que não fazem parte do seu mundo. Porém, um
dia um querido colega, talvez compadecido da maleza que enfrentava,
intimou que na saída deveria acompanhá-lo até sua casa para um
café da tarde. Sua casa ficava no meu caminho de volta da escola.
Dito e feito. Um convite desses não dá pra desprezar.
E
o segui obedientemente. Ao chegar no local fui conduzido por sua mãe
até uma farta mesa.Confesso que meus olhos de onze anos jamais
haviam visto tanta fartura. Não que faltasse tudo em casa. Naqueles
tempos sempre havia algum café. Muito embora não fosse comum a
presença na mesa de café e leite. Se havia café certamente faltava
leite. Se havia leite é certo que não havia café. Pão sempre
tinha. Mas margarina não era sempre. Vez por outra, normalmente
perto do dia cinco, a fatura permitia um pouco mais. E aí tinha doce
de leite (que chamávamos de mumu).
Mas
na mesa do meu amigo tinha coisa demais. Café, leite, iogurte (o que
não era comum naqueles tempos), suco de laranja, chá, bolo,
bolacha, pão de milho, broas, manteiga, mel, schimiers. Foi difícil
deixar aquela mesa e voltar para casa. Foi difícil também provar
tudo o quanto ofereciam.
Claro
que hoje, passados tantos anos, passei por experiências tantas que
uma mesa de café, que seja colonial lá de Gramado ou de Canela ou,
ainda, de um hotel classudo, certamente não vão me impressionar.
Mas, naquele tempo, foi o mais perto de um banquete que pude chegar.
E as primeiras impressões ficam retidas na nossa mente.
Um
verdadeiro banquete foi o que serviu aos amantes do futebol a Seleção
da Holanda naquele mesmo ano. Em 1974, na Alemanha, a Seleção
Laranja encheu nossos olhos. Era uma mesa farta. Intensidade física,
disposição, luta permanente pela bola, recomposição defensiva
rápida, dez atacantes e onze defensores e uma vontade interminável
de vencer. Enquanto escrevo não sei se o Brasil chegará na final.
Não sei se Holanda ou Argentina lá estarão. De qualquer modo,
aquele café extraordinário que me foi servido pelo colega me faz
lembrar que nossos olhos captam muito mais do que simples imagens.
Por ali passam pequenas e grandes cenas com as quais vamos criando
nossas realidades particulares.
A
Seleção da Holanda foi derrotada em 1974 pelos alemães. Pouco
importa. Aos olhos do menino de onze anos ali estava um banquete. E
um banquete encanta. Um banquete merece ser lembrado. Um banquete é
um banquete e pronto.
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