Reprodução da pintura
de Maximilian Philip – séc. XIX
|
Vez por
outra o seu Barcelar espantava a mosquitama sacando de sua bombinha
de flit, lançando detefon no ar. O ritual se repetia sempre a
mosquitama tomava conta do ambiente. Alguém, talvez entendido no
assunto, disse que aquele produto fétido além de matar os mosquitos
causava a queda de cabelo. Vá saber!
Após o
Barcelar ficava a RS 030. Não havia na época o acesso à Freeway.
Desta forma, após a rodovia havia um vasto campo onde raras cabeças
de gado pastavam. Era um campo limpo, com poucas árvores e alguns
arbustos. Havia ali açudes que serviam para aplacar o calor dos
bovinos naqueles dias quentes de verão. Além dos bovinos, nós, os
meninos da Vila das Pererecas, espantávamos o calor naquelas águas
embarradas.
Visto
de cima, antes do primeiro mergulho, a água se mostrava limpa.
Porém, o pisotear insistente da gurizada no fundo tornava a água
escura. O barro abandonava o fundo e vinha decisivamente se
concentrar nos cabelos, nas orelhas, nos cílios, nas sobrancelhas e
acima da boca tornando todos nós pequenos rivelinos.
Não
sei ao certo quais os dias que pra lá íamos. Porém, imagino que
fosse na sexta ou sábado, pois uma enormidade de carros transitava
em fila indiana em direção às praias. Eram sincas, DKWs, gordinis,
fusquinhas, rurais e corcéis com lotação completa. Alguns levavam
colchões, colchonetes e bicicletas amontoadas. Outros transportavam
verdadeiras mudanças sobre seus carrinhos rebaixados de tanto peso.
Para
evitar que os minúsculos calções de tergal ficassem embarrados,
lançávamos mão de uma estratégia das mais populares por aquele
recanto. Assumíamos nossa condição indígena, estendendo os
calçõezinhos nos arbustos. Assim, pelados e destemidos, sem
censura, sem pecado e sem noção saltávamos do barranco em piruetas
e coreografias das mais diversas como só o fazem os atletas
olímpicos. Nossos sentidos estavam todos no prazer que aquele pedaço
de paraíso poderia nos proporcionar. Não havia maldade em nossos
corações.
Os
motoristas, talvez pais escandalizados com a cena inusitada, abriam a
buzina de seus carros denunciando o bando de meninos pervertidos e
suas bundinhas brancas à vista de todos. Pouca atenção dávamos a
esta ruidosa manifestação. Nossos corpos aquecidos pelo sol
continuavam se lançando na água barrenta do açude, sem medo. O que
mais assustava não eram os carros e seus motoristas, mas sim as
insistentes sanguessugas que grudavam nas pernas, nos braços e nas
costas da gurizada. Fazíamos um mutirão para retirar as estranhas
criaturas que tentavam chupar nosso sangue.
O verão
passava e acabava a festa. Os sincas e gordinis deixavam de transitar
pela RS. A rota da praia ficava vazia. Crescemos e abandonamos de vez
as peripécias nos açudes. Cobrimos nossas vergonhas e descobrimos
que a inocência chega ao fim um dia. O Barcelar fechou. A tevê
mudou drasticamente. No ringue o sangue jorra de verdade. Os golpes
quebram costelas, braços e pernas. Os mosquitos aí estão prontos
para enfrentar os detefons da vida. Os bois continuam no campo,
ruminando sem sentido.
Os
meninos já não se fantasiam de índio.
Nenhum comentário:
Postar um comentário