12/08/2014

O tênis branco

Estudava no segundo grau, à noite. Na década de 70, era assim que se chamava o ensino médio. Era o mais novo da turma. Tinha uns 14 anos de idade. Minha turma era de pessoas mais velhas. Gente que havia deixado de estudar e, agora, encarava novamente os bancos escolares. Queridos colegas. Compenetrados, sérios. Eu era um moleque. Sério, compenetrado mas, ainda assim, um moleque. Havia colegas com incríveis 40 ou 50 anos. Gente calejada, experiente, com bons empregos e família constituída.
Para variar minha situação não era das melhores. Trabalhava durante o dia num subemprego. Ganhava uma fortuna ao redor de meio salário mínimo. Não precisa dizer que vivia invariavelmente pelado. A impressão que tinha era que os bolsos da minha única calça jeans serviam tão somente para esquentar as mãos. A dinheirama que ganhava servia para a compra de uma blusa cacharel azul, uma camiseta ou um par de tênis ou sapatos dos mais simples, em três ou quatro vezes no crediário das Casas Luiz. Um produto a cada mês, é óbvio. Num mês, camiseta; noutro calça; no seguinte, um tênis e assim por diante. Ao final do ciclo, os primeiros itens já estavam surrados, entrando novamente na lista da reposição.
Havia um colega de aula, o Laerte, que era pastor. Seu cabelo era milimetricamente penteado. E durante toda a aula assim permanecia, sem qualquer sinal de rebelião. Ele usava calças jeans e sapatos. Era muito estranho, pois ninguém usava jeans com sapatos naqueles tempos. Só o Laerte. Na verdade, calça jeans só se usava com tênis. Era uma norma, uma lei imposta pelo costume. Mas, o Laerte não cumpria esta lei. E, além disso, cometia outro sacrilégio: sua mulher frisava a calça jeans com ferro quente. Com isso, o sério Pastor, tão dedicado às coisas do céu e pouco atento aos costumes mundanos, cometia dois pecados mortais diante de meus olhos.
O relógio andou e já estávamos nos anos 90. O tempo passava lentamente. Não havia ainda a internet. Computadores de mesa existiam, mas era uma raridade. Celulares existiam na Itália. Mas era uma caixa enorme e pesada. Como morava na Grande Santa Rosa, estudava na Faculdade de Direito de Santo Ângelo. Era colega de um rapaz chamado Juliano.
Era novinho, o Juliano. Meio atrapalhado, de boa família. Seu pai, se não me engano era delegado. Juliano usava calças jeans e tênis. Era correto o Juliano. Porém, havia um colega, não sei se de Santiago ou de São Luiz Gonzaga, que implicava com ele. Não com o Juliano em si, mas com os tênis dele. Ocorre que os tênis do Juliano eram brancos. Imaculadamente brancos. Alvíssimos como os lençóis daquelas propagandas de sabão em pó.
Não sei porque cargas d´água a brancura dos tênis de Juliano faziam mal a este colega. Quase que diariamente Juliano era alvo da ira do desalmado. Ele, de espírito sorrateiro, esperava o momento oportuno e pisava com decisão no alvo pisante. Deixava uma mancha. Juliano olhava para baixo resignado. Não reclamava. Talvez preferisse uma silenciosa vingança. No outro dia, lá estava ele novamente com seu tênis impecável, aumentando a ira do outro.
Este colega implicante vivia cercado de belas, sorridentes e descoladas meninas. Algumas delas, vez por outra, também ostentavam tênis sujinhos. Cheguei à conclusão que, naquela época, mulheres não gostavam de homens com tênis brancos.

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