Meu
pai era bom de conta. Dava-se um número vezes 7548. Segundos depois,
pimba! Podia recorrer à máquina de calcular para conferir: não
errava uma. Era iletrado. Chegou ao terceiro ou quarto livro, se
muito. Porém, era dado às rimas. Versos de trova, às vezes saíam
de sua boca. Nos anos 70, eu era pequeno ainda, a repressão ainda
era forte. Certa vez, meu pai inventou de escrever uns versos
ironizando o poder local, o da igreja e o de muitas outras
estruturas. Era um pasquim, segundo disse. Leu em voz alta na sala.
Falava de um pastor que embolsava mensalmente uma polpuda quantia
vinda dos dízimos dos crentes, das tramoias políticas da pequena
comunidade e de outras instâncias. Era tudo rimadinho. Coisa linda
de se ouvir. A crítica era ácida, mas tinha algum humor.
Minha
mãe morria de medo. “Queima isso é perigoso. Se te denunciam,
Deus do Céu!”. Ele ria e dizia que ia numa gráfica para imprimir
tantos exemplares quanto pudesse e distribuiria pela cidade. Nunca
fez isso. Tinha-se muito medo.
Mas,
a censura, a polícia, o DOPS, o exército não se interessavam muito
por pasquins apócrifos ou produzidos por desconhecidos de pouca
representatividade. Centravam a munição nos grandes. Chico Buarque,
Caetano Veloso, Gilberto Gil e até o Odair José, que, ao seu modo e
na sua forma, cantava para a empregada, para a prostituta, para o
desvalido, sem muita sutileza e poesia. Mas, afinal cada um faz o que
dá conta.
Meu
pai já saiu deste plano. Minha mãe foi antes. Depois disso, vivemos
períodos onde o medo, a censura, a perseguição nem mais estavam
sendo lembrados. Mas, alguma coisa está fora da rota, fora da nova
ordem mundial. A nossa pátria amada é celebre em retomar estas
questões que julgava-se enterradas. Dia desses, um filme sobre o
Chico Buarque, que seria apresentado num festival uruguaio, foi
vetado pelo nosso governo. Caetano Veloso, vez por outra sofre uma
perseguição enorme dos milicianos que gravitam no entorno do
governo. Livros foram censurados no Rio de Janeiro.
Os
tempos mudam. Mas, pelo que se vê, as mentes ainda resistem em
administrar aquilo que realmente interessa. Ficam na periferia e na
picuinha. Página infeliz da nossa história, diria Chico. Para os
artistas, é claro, a censura vindo de onde vem só reforça o valor
da obra. Chico e Caetano, por exemplo, quando atacados pela turba
aumentam sobremaneira seu capital e seu prestígio especialmente onde
o pensamento é valorizado. Na Europa, o Brasil virou anedota.
Se
estivesse por aqui meu pai certamente pegaria um lápis e umas folhas
de caderno e escreveria alguns versos bem rimados e consistentes.
Minha mãe, se aqui estivesse, ficaria com medo. Um certo clima de
desajuste institucional no ar pode causar algum medo nas pessoas. Boa
parte da população cala porque consente, outra cala porque tem medo
ou não notou ainda que os danos causados serão sentidos ali na
frente.
Por
mais Chicos e Caetanos. Por menos milicianos.
* Meu pai Dorvalino Cardoso dos Reis foi domador, jóquei, trabalhador rural, gostava de um chimarrão (surpreendentemente preparado numa xícara) e de uma conversa sobre política e futebol.
Pior que estamos revendo estes absurdos.
ResponderExcluirTambém gostaria de saber, amigo. Talvez no futuro isso tudo faça algum sentido!
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