26/12/2012

Ponto final


Tive professores que adoravam ditar a matéria. Havia um que gastava um período inteiro lendo frases enormes. Dava ênfase especial às vírgulas e aos pontos. Cada vez que soltava um “novo parágrafo” semeava na turma um sentimento de desânimo. Saboreava cada frase dos seus textos infindáveis. Não dava espaço para lamentações. Quando o pessoal começava a se dispersar, aumentava o ritmo da leitura até que as meninas da frente, as melhores alunas da turma, solenemente murmurassem quase como um choro, que não estavam conseguindo acompanhar o ritmo.
Após um sorriso maroto, entrava em silêncio até que todos se recompusessem. Quando a turma relaxava, desandava novamente na ladainha. Apesar da determinação do professor, de minha turma não saiu nenhum médico. O máximo que conseguimos foi mestrado em garranchos. Fosse hoje e teríamos sérios motivos para uma ação judicial onde cobraríamos com juros e correção os danos morais causados pelo cansativo método pedagógico.
É verdade que este professor, odiado durante o transe do ditado, desenvolveu uma técnica de reconciliação, devolvendo aos pequenos um pouco de satisfação. Após o cansaço que a transcrição impunha a todos, era a hora do descanso. Quando o texto chegava ao final, com voz forte e inconfundível, decretava após a última frase do fatídico texto:  -Ponto Final! 
O que se via eram caras alegres, satisfeitas. Largávamos os lápis e as canetas, balançávamos o cansado braço. Afastávamos os cadernos para o lado. Era o momento relax do dia. Depois era a hora de dirimir dúvidas, corrigir uma que outra palavra e a aula seguia sem sobressaltos. 
De vez em quando me lembro da alegria que o ponto final nos proporcionava. Quando o programa de tevê é chato, quando a música não agrada, quando a situação é constrangedora, a alegria está nos créditos finais, no acorde derradeiro ou no ponto final.  De algum modo, o final de ano é o fim de um texto. É um marco. Não é definitivo porque novos capítulos serão construídos lá na frente. Porém, agora, neste exato momento é hora de olhar tudo o que foi escrito. Revisar o texto. Encontrar os erros. Descansar um pouco porque daqui a pouco tudo recomeça. 
Porém, se o seu ano foi cheio de lamentações, se não deixou motivos para festa, para celebrações, se o caminho foi espinhoso e cansativo, imponha um ponto final. Vale até imitar o meu professor e, de frente para o espelho, com dedo em riste e certo sorriso no rosto, dizer em alto e bom som: -Ponto final!  
A partir daí, recomece a história de outra forma, invente outros parágrafos, mude de linguagem. Use as experiências acumuladas ao longo do tempo. Mesmo as negativas têm o aspecto pedagógico. E, no mais, um bom novo ano a todos. Ponto final.

22/12/2012

Deu pra ti

Não há gíria mais anos 80 e portoalegrense do que "Deu pra ti". Mas, enfim, de que forma surgiu esta expressão?
Os anos 70 iam ficando para trás. O sentimento era de que o cenário de opressão, de ditadura, de censura iria ser impiedosamente soterrado nos anos que se seguiam. Pelo menos era o desejo recorrente naquela época, suplantar os pesados anos de chumbo.
Eis que um belo dia Porto Alegre acorda com os muros pichados com a bela frase "Deu pra ti anos 70". De onde surgiu aquela deliciosa iniciativa?
Na realidade a pixação era uma chamada para um show do Nei Lisboa. Depois, virou filme Super 8 dos cineastas Nélson Nadotti e Giba Assis Brasil. Kleiton e Kledir, sucesso nacional naqueles anos, aproveitando o clima da capital gaúcha, cravaram nas paradas de todo o Brasil os versos "Deu pra ti, baixo astral, vou pra Porto Alegre, Tchau!".
A expressão voltaria depois na música Horizontes, de Flávio Bicca Rocha, interpretada pela Elaine Geissler, que fez parte da trilha sonora da peça Bailei na Curva, em 1983. "Anos setenta não deu pra ti/ E nos oitenta não vou me perder por ai", dizia a bela letra.

Quer saber mais?

19/12/2012

Previsões que não falham


O futuro está logo ali. No entanto, a ansiedade, a incerteza ou a insegurança são responsáveis pela tentação de antecipar os acontecimentos. E, cá entre nós, quem nunca pensou em viajar no tempo e descobrir o que vem pela frente? Quem nunca sonhou em visitar o futuro?
Isto não é uma tendência atual. A história começou em tempos imemoriais. Entre os gregos, por exemplo, já havia o costume de lançar perguntas aos deuses para que o futuro fosse revelado. Oráculos, pitonisas, sacerdotes e adivinhos têm presença constante na mitologia grega.  
Porém, a tarefa de prever o futuro é muito mais espinhosa do que se imagina. O presidente americano Franklin Roosevelt que o diga. Tido como o maior estadista dos EUA, Roosevelt pode ter sido tudo isso. Porém, foi um rotundo fracasso como adivinho. Consta que o vulto histórico nomeou uma respeitável comissão para antecipar quais as novidades tecnológicas do seu tempo seriam importantes no progresso da humanidade. Publicado em 1937, o relatório apresentou índice zero de acerto. 
Ao longo dos tempos, alguns seres privilegiados bem que tentam desvendar os caminhos do destino.  São as cartomantes, as ciganas, os feiticeiros e outros tantos adivinhadores de plantão. Munidos de bolas de cristal, de borra de café, das linhas das mãos, das expressões faciais, do jogo de búzios, das entranhas de algum animal ou de algum insuspeitável auxílio do mundo extrafísico, adentram ao mundo do desconhecido. Viajam por um mundo que ainda está sendo construído.
Dizem alguns espertos que não há como errar. O adivinho deve traçar três cenários possíveis. Um otimista, um pessimista e um intermediário. Um deles certamente será o correto. “A manha do ganso” é jogar no próprio curioso a responsabilidade pelo andamento da história. Se tiver fé, se investir, se insistir, se planejar, se suar, se se dedicar, o futuro será um. Se, no entanto, o curioso só esperar, deixar de investir, se tiver muita preguiça, se não planejar o futuro será outro. 
E não é que dá certo! Não há futuro, não há destino que seja construído sem a força do indivíduo. Os deuses gregos que traziam a ventura ou a desgraça ao mundo curtem suas merecidas aposentadorias numa divina festa onde não faltam ambrosia e vinho. Não estão mais de plantão organizando destinos. Seus ouvidos estão fechados para as reclamações dos simples mortais.
Então o que nos resta, se o Olimpo está em recesso? 
Viver os dias de hoje como construtores é uma das respostas possíveis. Fé, investimento, insistência, planejamento e suor. Pensamento positivo, mesmo no meio da tempestade. 
O futuro é um livro que vem sendo escrito aos poucos. Uma página por dia. Algumas delas com muita emoção, muito movimento. Outras mais tranquilas. Drama, sátira, comédia, romance e poesia.  Tudo encordoado. A linguagem é a peculiar de cada autor. Em roteiros tão diferentes, tão variáveis, impossível que os outros definam o nosso futuro. Somos os escritores, os protagonistas. De nossa atuação nasce o futuro. 
Ele tem a nossa cara. A nossa forma. O nosso suor. Nem mais nem menos.



O amanhã
Letra: João Sérgio
Intérprete: Simone

"A cigana leu o meu destino
Eu sonhei!
Bola de cristal
Jogo de búzios, cartomante
E eu sempre perguntei
O que será o amanhã?
Como vai ser o meu destino?"


12/12/2012

Bloco de notas


Perfil - No passado, em regra, o fim de um relacionamento trazia consigo certa dose de dor, de compaixão dos verdadeiros amigos, de recolhimento. Agora parece que se transformou em troféu. A maior das preocupações, nos tempos atuais, parece ser a mudança no perfil na rede social. “Fulano de Tal atualizou o perfil de relacionamento sério para disponível”. 
É possível imaginar até o espocar de fogos de artifício. Os tempos são outros.

Pode crer” – A expressão “pode crer” ou “podes crer” é uma daquelas que foi enterrada com a passagem do tempo. Era usada com regularidade pela juventude urbana na distante década de 70 do século passado. A expressão era daquelas que valia para tudo. 
-Vamos dar uma volta? –Podes crer!
-É verdade que a Maria trocou o Manoel da padaria pelo João do Armazém? – Podes crer!
Em certo ponto “pode crer” representava o papel do curtir das redes socais. Alguém hoje posta: “Um grande drama se abateu nesta quinta-feira: saí de casa cedo, no caminho do trabalho fui assaltado, na chegada o chefe me demitiu, pelo celular me informaram que o Oficial de Justiça estava lá em casa com uma Ação de Despejo, voltando para casa sofri um acidente. Estou hospitalizado!”. 
Fulano, Cicrano e Beltrano curtiram. 
-Curtiram o quê, caras pálidas?

Amizade Virtual – Quantos dos amigos virtuais convidaríamos para cinco minutos de prosa? Quantos são os que passam por nós neste mundo material que nos cabe e nos cumprimentam? É normal ficar perguntando quando passamos por um algum amigo virtual, “eu conheço esse cara de onde mesmo?”.

Zoação – Há dose cavalar de irresponsabilidade nestas pegadinhas que algumas rádios FMs fazem. Lá na Austrália a estratégia da zoação levou enfermeira a Jacintha Saldanha ao suicídio. Com a desculpa de arrancar alguns risos na dileta audiência, comunicadores desconhecem totalmente a ética e a moral. Rir nem sempre é o melhor negócio.
Aqui na província, a turma do Casseta, do Pânico e outros menos votados vez por outra escorregam pela zoação barata. Não curto! Não compartilho. Só comento!

Dia desses – Dia desses a gurizada postou na rede uma imagem de enforcamento. Na foto a indicação de que aquilo ocorria em determinado país. Os mortos eram políticos corruptos. Foram infelizes, pois escolheram um país com regime ditatorial. Sabe-se lá que vítimas eram aquelas cujos corpos pendiam em guindastes. No impulso publiquei comentário dizendo que talvez fossem vítimas da opressão de um governo bárbaro, corrupto. Talvez fossem opositores, resistentes. Pessoas normais que queriam a liberdade. Talvez o crime fosse somente pensar diferente.
Um que outro não gostou. Outra publicou uma série de letrinhas iguais. Não sei se era xingamento, se era reprovação ou aprovação.
Sei lá, na rede se vê cada coisa!

06/12/2012

Os sabores da infância


Numa daquela conversas triviais, disse que não tenho fixação por algum tipo de alimento em especial. Erro meu. “Só por doce de abóbora”, emendei com certa pressa, notando que havia feito uma afirmação inverídica.  “Ambrosia é muito bom”, disseram do lado de lá. “Só se for feito pela mãe, pela avó ou por uma tia idosa”, completei com certo ar professoral. 
Chegamos à conclusão de que os sabores, as texturas e as cores dos doces feitos em casa a partir daquela receita especial de alguém da família são diferentes e não podem ser reproduzidos por ninguém. Nem aquele famoso cozinheiro que exibe sua arte na tevê, com maestria e graça, é capaz de fazer o doce da mamãe, da titia ou daquela vovó. Não é incompetência do diligente cozinheiro não! A culpa é nossa.  Isto porque a grande diferença está na nossa afetividade, no prazer de quem se serve e no prazer de quem faz.