10/09/2020

Desafiando os monstros marinhos

As grandes navegações ocorreram faz alguns séculos. O mundo era uma pequena porção. Os navegadores foram abrindo fronteiras. O mapa mundial foi acrescido de novas terras, novos rios, novas montanhas e novos mares. Marinheiros morreram de escorbuto. Demorou até se descobrir que a vitamina C contida no limão, laranja, lima e bergamotas poderia ter salvado a vida de alguns valentes navegantes que assistiram a saúde abandonando seus corpos enquanto as gengivas sangravam, a pele era acometida de pústulas e feridas, edemas nas articulações e infecções generalizadas.

Foi um esforço enorme. Doenças, tempestades, fome, dores no corpo e uma infindável incerteza acompanhava diariamente aqueles que se metiam a explorar os mares e tentar vencer os mitos criados pelo desconhecido. Monstros engoliam navios inteiros. Algumas embarcações perdiam-se depois de chegar muito próximo da borda. Vendavais desorientavam e ondas gigantescas, muitas delas provocadas por serpentes gigantescas com bocas com milhares de dentes afiados, que empurravam navios para lá e para cá. Velas eram derrubadas e, por fim, o naufrágio impiedoso levava para o fundo do mar o sonho de marujos movidos pela coragem.

Eis que agora, depois de estabelecidas certezas, não é incomum encontrar nas redes sociais gente contestando o formato do planeta e do próprio mar. A imbecilidade vem impulsionada por teorias conspiratórias que apostam na credulidade de pessoas que pouco sabem, que acreditam no poder do negacionismo como forma de criar um mundo diferente daquele que o consenso científico estabeleceu a partir de análises, descobertas, cálculos, conclusões, muito suor e alguma dose de intuição.

Então, a Terra é plana. Chega-se num ponto onde o oceano acaba. É a borda do mundo. O finzinho de tudo. Os navios chegam até ali e, caso não vençam as forças da água que formam uma senhora cachoeira, caem num vazio até então não explicado. Um penhasco nunca visto por satélites nem sondas. Mas, independentemente da ciência aeronáutica ou espacial, sabe-se que a Terra tem borda, sim. Há quem diga que pode até ser de catupiry ou de cheddar.

Cristóvão Colombo, Américo Vespúcio, Vasco da Gama, James Cook, Fernão de Magalhães e outros tantos navegadores sabiam muito bem disso. Omitiram de propósito. Talvez não fosse interessante contar a verdade naqueles tempos. Agora, com o WhatsApp e as correntes do bem que pregam a negação dos conceitos básicos e privilegiam a insanidade individual (talvez para a construção de um estado de insanidade coletiva), privilegiados descobrem a verdade. Até agora estavam mentindo. Todos mentiam. É hora de descobrir a verdade.

Talvez este tenha sido o mote para um casal de italianos se aventurarem pelo mar para chegar à borda. Queriam provar que a Terra é plana e que o mar tem um fim. Desorientados, como se vê, não foram muito longe. Tiveram que ser socorridos e trazidos de volta para a terra firme. Sorte deles. Vai que avançassem muito no oceano e acabassem por encontrar os monstros que incomodavam os seres viviam no imaginário fantástico cultivado com fé e medo na Idade Média europeia.

As serpentes atlânticas com suas bocas de fornos que lançam um calor infernal deformando os corpos dos navegantes e ensurdecendo com um mugido de quinze touros, descritas por São Brandão, aguardam aqueles que ainda hoje ousam adentrar no mar profundo. Sorte deles que foram resgatados e não precisaram enfrentar os monstros que guardam as bordas do oceano.