18/12/2014

Elvis Presley

Ele era o mais velho da turma. Tinha dois ou três anos a mais. E isso para nós era muito tempo. Mas era tão infantil, tão virgem e tão atrapalhado quanto podiam ser os meninos de treze anos naqueles tempos. Tudo ainda era sonho. A realidade é que nossa turminha sonhava. Queríamos aventuras. Amorosas de preferência. Aventuras é que menos aconteciam. Elas eram idealizadas e vividas nos mínimos detalhes dentro dos quartos, das salas e nas garagens, enquanto pais, mães e irmãos ali não estavam. Longe dos olhos dos outros, liberávamos nossos sonhos narrando em voz alta o que faríamos nesta e naquela situação.
As meninas faziam parte da turma e de nossos sonhos. Aos sábados, então, que eram longos, tínhamos tempo suficiente para ouvir uma música, tomar um café preto, comer um resto de pão, conversar, caminhar pela cidade a esmo.
Encontrar as meninas da turma era muito bom. Elas iam se juntando aos poucos. Em dado momento ficavam na frente da casa de uma delas, brincando, sorrindo e aguardando o resto da turma. E chegávamos arrastando nossas asas, como franguinhos esperançosos. E sorríamos. E contávamos piadas. E nos mostrávamos o quanto podíamos, tentando conquistar alguma atenção. Mendigando, talvez, um carinho. E nas janelas, de olhos atentos, irmãos mais velhos e pais vigiavam suas virgens.

17/12/2014

Ideias válidas

A fogueira foi o meio encontrado pela
 Inquisição para validar suas ideias,
 impondo suas "verdades"
Imaginemos que só há uma ideia válida. Que tudo o que se concebeu em termos de conhecimento até os dias atuais esteja submetido a uma única e derradeira verdade. A verdade absoluta, irretocável, inamovível e inatacável. Uma verdade só que explicaria de forma cristalina e permanente tudo o quanto há, tudo o quanto houve, tudo o quanto haverá.
Imaginemos que esta verdade seja concebida por algum filósofo. Escolhemos por acaso (ou não) Sócrates. Então Sócrates tem a verdade. E tudo o que se sucedeu depois dele está intolerantemente derrogado. Nada vale mais do que o pensamento de Sócrates. E fim.
É claro que o conhecimento adquirido pelos homens ao longo dos tempos é cumulativo. Antes de Sócrates tantos outros estabeleceram princípios válidos. E depois deles milhares de seres tornaram a vida mais complexa e cheia de opções.

09/12/2014

O Milagre

Se vivesse no mundo antigo, talvez erguesse um totem em homenagem à mandioca. Ou, se algum talento tivesse, poderia mesmo conceber um longo poema onde destacaria a alvura e firmeza de seu corpo contrastando com sua pele rugosa. Sim, compreendo que tudo isso pode parecer estranho. Nos dias de hoje, no entanto, melhor nem pensar em tótens e poemas. Já há iniciativas estranhas demais em nosso meio. Seria mais uma que se perderia no meio de tanta informação. Mas, ao menos explico: a mandioca teve papel importante na minha formação.
Nos primeiros anos de vida, então, nem se fala. Posso dizer mesmo que se não fosse a mandioca, mais especificamente a sua farinha, aliada à inventividade de minha mãe eu não estaria aqui escrevendo este texto estranho.

03/12/2014

Bermudas coloridas

As cores vibrantes dos anos 80 estão de volta. Vermelho, azul, verde e amarelo estão em bermudas, calçados e na camisetas. É um revival new wave nas roupas. As vitrinas estão mais coloridas, não obstante as diferenças marcantes entre os tempos da esperança, dos sonhos e estes de hoje. Deixando as filosofias e as apreciações de boteco de lado, vamos ao que importa.
Dia desses ousei entrar em uma loja. Me chamou a atenção uma bermuda de uma cor um tanto quanto exótica: algo como um vermelho levado ao rosa ou ao abóbora. Enfim, a cor pouco interessa. A atendente, educada e atenciosa (como deve ser uma atendente) mostrou o produto desejado. Deu o preço à vista e o final, em caso de crediário. Confesso que olhando o produto de perto meio que houve um desencanto.

26/11/2014

Um filme

Os olhos se abrem. É cedo da manhã. Mais um dia começa para Leonel. É dia de Primavera.
Os pássaros já fizeram seu alarido. E isto começou muito antes de acordar. Aliás, a vida segue sempre. Não dá tréguas. 
O corpo descansou, é certo. Mas, a viagem foi grande. Tem sido grande. É estranho. Muito estranho pensa Leonel, lembrando que tem feito longos trajetos. Esteve em locais que não lembrava mais. Fez coisas que não sabia. E agora, quando acorda, a impressão que tem é a de que esteve atuando em um filme. Cenas de violência, de traição, de guerra, de amizade e de amor.
Porém, sente que este filme só foi visto por uma pessoa. E que sua atuação talvez não tenha sido das melhores. Que o roteiro não seja dos melhores. Que as histórias contadas não sejam das mais inspiradoras. Mas, a pior sensação é a de que não tem acesso a esta sala. E, de algum modo, sente com se houvesse certa injustiça no ar. Leonel gostaria muito de ver esta película. E, quem sabe, discuti-la. E, quem sabe, reinventá-la. Quem sabe refazer aquelas cenas que não ficaram boas.
Mas, no fundo sente que não há injustiça alguma. E, de algum modo, isto o chateia.

20/11/2014

As doces ameixas

Tarde da noite, sentado à frente do computador, uma pequena palpitação no coração aparece. Coisa muito sutil. Uma leve fisgada. Vou morrer, pensei logo em seguida. Esperei alguns segundos, alguns minutos e nada. Continuei escrevendo mais uma crônica, achando graça de minha conclusão apressada. Ora, como poderia meu coração contrariar o laudo do meu cardiologista?
Certo que um dia morrerei. Disto não restam dúvidas. Aliás, esta é a única certeza que nós, os humanos, podemos carregar na vida. O nosso fim ocorrerá. E, fazendo leve exercício antecipatório, posso até ver que, enquanto o corpo frio espera a hora do desaparecimento por completo, familiares, amigos, conhecidos e curiosos se aproximarão do caixão com indisfarçável compaixão. E alguns olharão com pressa e outros com reverente atenção minha imobilidade e analisarão minha brancura e notarão o quão envelhecido estou.

13/11/2014

Ódio: tô fora!

De uns tempos para cá, especialmente nas redes sociais, vêm crescendo de maneira muito significativa as manifestações de ódio. Como diria aquele velho pensador, nunca antes na história deste país uma eleição deu tanto pano para manga. As manifestações que se sucederam, muitas delas de pacatos e cordatos cidadãos, gente boa, educada, de boa família, fariam corar até a mais gélida estátua da figura mais desavergonhado que possa existir.
Não vou dizer que não assista alguma razão aos guerreiros. Não podemos e não devemos desconsiderar a gritaria toda. Porém (sempre há um porém), convenhamos que o foco das manifestações estava no lugar errado. Os mais espertos todos se colocaram de um lado e, por conseguinte, lançaram para o outro lado todos os retardados, ignorantes, insensíveis, irresponsáveis etc etc etc.

05/11/2014

Olhos verdes

A turma não era fechada. Havia um núcleo de três ou quatro fiéis escudeiros. Somavam-se mais quatro ou cinco preferenciais. A partir daí havia liberdade de buscar novos horizontes nas redondezas. Muitos destes contatos não aderiam à turma. Mas faziam, isso sim, parte da vida de alguns deles.
Não precisa dizer que eram adolescentes. Viviam na pequena cidade. O mundo era a rua. As garotas eram, em regra, as irmãs dos membros do grupo. Bem, na verdade, não eram suas garotas. Muitas delas eram sim o que queriam como suas garotas. Porém, não avançavam muito neste terreno.
Vez por outra apareciam, de surpresa, algumas pessoas que não faziam parte do grupinho, mas, por uma ou outra identificação, acabavam participando de algumas das ações.

28/10/2014

Eu queria ser Peter Frampton

Com 10 ou 11 anos queria ser jogador de futebol. Sonhava até em vestir a camiseta da Seleção Brasileira. Disputar uma Copa do Mundo estava nos planos. Era um menino sonhador como são todos os meninos. Rivellino, com sua patada certeira e seu bigodão, cabelos longos e uma canhota de derrubar os adversários, saia dos jogos em preto e branco da Copa da Alemanha para os campinhos de pouca grama e muita areia. Todos queriam ser Rivelino, mesmo que a interpretação fosse pífia. No meu caso, faltava intimidade com o pé esquerdo e a penugem que ameaçava aparecer ainda não poderia ser chamada de bigode.
Havia outros quase tão bons quanto ele: Beckembauer, Müller, Cruyff e Neeskens. Mas eu, quando perdia a alcunha de Rivellino, optava sempre por Lato, um polonês, com poucos cabelos, mas dono de pernas ágeis e velozes e, além disso, de raro faro de gol. Em síntese, o atacante tinha tudo o quanto me faltava nas lides futebolísticas.

27/10/2014

A vida comunitária

E durante toda a noite, os casais rodopiarão
pelo salão apinhado 
Na pequena vila a vida é comunitária. As dores de uns são as dores de outros. Os prazeres de uns são os prazeres de outros. Os sonhos e os pesadelos de uns são sonhos e pesadelos dos outros. Porém, os pecados são casos particulares.
Quando raramente alguém morre por ali, a vila toda se compadece. E todos choram ao redor do caixão e abraçam os familiares com verdadeiro pesar. Lembram passagens de glória do morto e dos tempos em que era um indivíduo cheio de virtudes. Alguns lançam aos céus sua inconformidade. Questionam Deus que o levou. E há os ajudam nas lides dos atos fúnebres. Alguns se encarregam de avisar os parentes que moram mais longe. As tias mais velhas invadem a cozinha. Fazem café forte para enfrentar a noite. Algumas trazem biscoitos feitos no dia anterior. E sempre haverá alguém que fornecerá mel, salame e queijo colonial. Os donos de casa perdem a direção do lar. Devem se ocupar tão somente de viver a tristeza da perda. É para isto que estão ali. E todos vão contribuir para que isto aconteça.

16/10/2014

Cheiro de pastel

Seguia pela avenida principal da cidade. Era o ponto de maior movimento. Uma ambulância havia passado pertinho dele. Sentiu mesmo no rosto o vento que fez. O som da sirene ainda reverberava na sua cabeça. As luzes do semáforo na frente se misturavam com todas as outras cores. Galhos de árvores, anúncios luminosos, letreiros anunciando promoções. Vozes se juntavam num zumzumzum incompreensível. Três por dez, três por dez. Calcinhas, calcinhas. Olha a mega, tenho os números premiados. Só 12 pilas. Fotos para documentos, fotos para documentos em um minuto.
Um cheiro forte de fritura saia da pequena lancheria. Era de pastel. Pastel de carne moída. Podia sentir o cheiro rançoso do azeite insistentemente aproveitado. Um aroma de café vinha do mesmo lugar.

09/10/2014

O Estado Febril

Dominado por uma febre, tentava dormir. Mas, algumas ideias esparsas tomavam conta de sua mente. Sem esforço, fatos contínuos foram sendo rememorados como se uma grande novela estivesse sendo encenada naquela hora. Sem forças para reagir, deixou-se entrar naquele louco teatro. Não sabia de onde vinham aquelas histórias que se uniam sem sentido. Talvez fossem coisas que lembrava, que inventava ou memórias de outras experiências que sem explicação surgiam como que magicamente.


A ilha
Era um navegador. Talvez fosse implacável. Achava que era poderoso. E exercia o pretenso poder. Não fosse isso e não teria sido abandonado na ilha. Apesar de ser o comandante, não ficava somente dando ordens. Tomava a frente em tudo. Achava que aquilo era correto. Mas, não aceitava erros. Não perdoava os que erravam.

02/10/2014

A viagem

Quando nos damos conta,
 nossa memória está quase apagada.
Vai restando muito pouco.
O cronista, às vezes, parece viver fora deste mundo. Isto não é coisa nova. É uma tendência antiga. Porém, nestes dias tão marcados pelo excesso de informações, talvez soe mais estranho, ainda, esta determinação dos cronistas de permanecerem ao redor de seus sonhos, de suas constatações filosóficas e de seus delírios. E, mesmo enquanto muitos rangem os dentes e se agridem e se matam e transformam a vida no planeta num aparente caos, resistem o que podem, optando por temas que não estão na pauta dos telejornais.
O mundo pega fogo. Guerras, denúncias de corrupção, disputas pelo poder, permanentes bombardeios reais e virtuais. E o cronista ali, quieto no seu mundo, falando de coisas de sua infância, da cena que viu na padaria da esquina, do gosto do café que tomou no barzinho ou em suas significativas conquistas que, aos olhos dos outros, não passam de prosaicas histórias do dia a dia. Coisinha leve que, no fundo, não têm o poder de mudar o rumo da humanidade.

16/09/2014

A perda da paz

Estava pesquisando algo sobre pena e me aparece um texto, de autoria do professor português Eduardo Henriques da Silva Correa, que trata sobre os códigos penais dos primeiros séculos de Portugal. Tempos difíceis aqueles. De constantes guerras, invasões, perseguições e muita crueldade. A vida não era fácil para ninguém. A legislação penal dos patrícios era um tanto quanto forte em vários aspectos. As penas eram extremamente graves. O próprio rei determinava a sanção. Muitas vezes impondo agravantes ainda mais cruéis do que as penas já estabeleciam nas ordenações.
A blasfêmia, falar mal do rei (de seus filhos, sobrinhos, tios e de qualquer membro da Corte), era um dos crimes mais graves, por óbvio. Não havia espaço para oposição. Os faladores eram punidos com a fogueira. Antes disso, talvez para garantir que no outro mundo o indivíduo não repetisse o ato, a língua do indivíduo era extraída pela garganta. A execução na fogueira somente ocorria após 20 dias dos atos preparatórios (extração da língua). Ou seja, falar mal do rei não era um bom negócio naqueles tempos.

10/09/2014

Coisas inúteis

Um bom vinho é a dica de Sêneca
Sábio é aquele que não gasta energia nem tempo em coisas inúteis. É o homem que não se mistura com a multidão simplesmente porque todos assim o fazem. É aquele que não sente medo de contrariar a maioria, que vota em quem acredita e não em quem os outros querem. Também é sábio aquele que não corre atrás daquilo que no futuro se revelará como algo totalmente inútil e desprezível.
Não pense que tudo isso é resultado de alguma reflexão aprofundada e minha lúcida análise das coisas do dia a dia. Não! Esta é a interpretação que faço de uma das passagens de Sêneca, em Da Tranquilidade da Alma. O filósofo, dramaturgo, político e escritor latino, analisava a complexidade do ser humano e seu anseio na construção de um estado vivencial mais feliz.
Sua receita, no entanto, apresenta uma série de remédios amargos. Não há doçura, não há espaço para sonhos e magias. Lúcio Anneo Sêneca corta o corpo sem dó nem piedade. Expõe as entranhas do homem e mostra onde se escondem as armadilhas que vão sendo construídas ao longo dos tempos. A razão toma conta sobrando pouco de improvisação, enterrando aquele doce sentimento de que as coisas boas serão encontradas no olhar despretensioso e casual. De que as respostas aos nosso anseios saem do nada, como se doces anjos assoprassem em nossos ouvidos aquilo que nossas mentes pouco brilhantes custam a encontrar.

03/09/2014

O reino das palavras

Existe mesmo um reino das palavras. É um lugar onde novas e velhas palavras organizadamente convivem. Todas elas, em todas as línguas, descansam neste local, saindo dali somente quando necessário. Descansar não é o termo mais apropriado, eis que algumas delas não encontram tempo para isso tal a insistência em incluí-las nos discursos diários, nas manchetes dos jornais e nos noticiários televisivos.
Em épocas como as de hoje, onde graça na Terra a violência, a intolerância, a vingança, o ódio, a guerra e o conflito, estas mesmas expressões não se entregam ao ócio. Estão nas bocas e nas mentes a todo instante. Transitam para lá e para cá com uma rapidez impressionante. Não têm sossego.

27/08/2014

Cena Urbana

O inverno deu uma trégua. É sexta-feira. O sol tomou conta de tudo. Apesar disso, alguns passam por mim bem agasalhados. Saíram pela manhã, quando era frio. Agora, já perto do meio dia, sentem certo incômodo. Imprevidentes, talvez não tenham colocado uma camiseta decente por baixo. Terão que permanecer com o blusão, embora o sol esteja forte.
A praça central está bem vazia. Raros aqueles que a cortam. Passo apressado, a hora do almoço está chegando. Carrego uma sacola de medicamentos na mão. Nada demais. São para a pele da filha adolescente. Cremes e loções, coisas deste tipo.

19/08/2014

Raios e trovões

Se a noite está bela, se lua e estrelas iluminam o céu por aquelas bandas uma certeza se tem: ninguém corre perigo. A tranquilidade não será alterada. Os cães podem dormir tranquilos como dormem seus donos. As ferramentas podem descansar nos galpões, depois de um dia de muito trabalho. Os carrinhos de mão podem ficar abandonados no quintal. Enxadas, pás e picaretas nem precisam ser guardadas.Tudo ficará relaxando no seu devido lugar. As galinhas no poleiro, os porcos no chiqueiro, as cabras no potreiro. Se a noite está bela, tudo ficará onde deve. Não há certeza maior: amanhã tudo estará no mesmo lugar.

12/08/2014

O tênis branco

Estudava no segundo grau, à noite. Na década de 70, era assim que se chamava o ensino médio. Era o mais novo da turma. Tinha uns 14 anos de idade. Minha turma era de pessoas mais velhas. Gente que havia deixado de estudar e, agora, encarava novamente os bancos escolares. Queridos colegas. Compenetrados, sérios. Eu era um moleque. Sério, compenetrado mas, ainda assim, um moleque. Havia colegas com incríveis 40 ou 50 anos. Gente calejada, experiente, com bons empregos e família constituída.
Para variar minha situação não era das melhores. Trabalhava durante o dia num subemprego. Ganhava uma fortuna ao redor de meio salário mínimo. Não precisa dizer que vivia invariavelmente pelado. A impressão que tinha era que os bolsos da minha única calça jeans serviam tão somente para esquentar as mãos. A dinheirama que ganhava servia para a compra de uma blusa cacharel azul, uma camiseta ou um par de tênis ou sapatos dos mais simples, em três ou quatro vezes no crediário das Casas Luiz. Um produto a cada mês, é óbvio. Num mês, camiseta; noutro calça; no seguinte, um tênis e assim por diante. Ao final do ciclo, os primeiros itens já estavam surrados, entrando novamente na lista da reposição.

06/08/2014

A pontaria

Naqueles tempos em que a nossa infantilidade imperava, investíamos algumas energias em atividades lúdicas. E, verdadeiramente, não tínhamos preocupações ecológicas. Ninguém tinha, naquela época. Minto, o José Lutzenberger tinha. Mas, ele era considerado louco. Um maluco que pregava o apocalipse. Era um visionário que enxergava perigos na derrubada de árvores, no lançamento de dejetos nos rios, nos lagos e no mar. Era um homem estranho que aparecia na capa dos jornais defendendo coisas que não falavam, que não se expressavam. Dava valor aquilo que ninguém notava. Convenhamos, isso era uma coisa muito estranha naqueles tempos em que o que mais havia era árvores e água limpa. No nosso meio, ao menos, ninguém entendia muito bem o que ele queria, afinal.
A gurizada, por sua vez, longe das polêmicas, gostava mesmo era de caçar passarinhos. E o instrumento usado era a funda ou o bodoque, como também é conhecido. Durante a tarde juntávamos a munição, pedrinhas redondas, e saíamos para o mato. A vontade era trazer farta caça. Não se fazia barulho. Pé ante pé nos deslocávamos procurando por uma presa. As pombas rolas eram as preferidas.

25/07/2014

Outros tempos

Título "Puxando Lata III",
de Ivan Cruz
Nos tempos de infância, a lata antiga do Leite Ninho me causava certo fascínio. Aquele desenho dos pássaros confortavelmente instalados dentro de um ninho, sendo alimentados pela mãe, aos meus olhos era algo de um beleza poética indescritível. Hoje sei que tudo não passava de um mero logotipo, uma marca que identificava uma empresa. Mas, na minha visão de então, era bem mais que isso. Achava aquilo tudo muito mágico.
Gostava tanto que, de vez em quando, assaltava a latinha amarela. Obviamente de modo furtivo, longe e acoberto das vistas de minha mãe, é claro. Sorrateiramente, temendo ser pego em flagrante, surrupiava a lata, abria sua tampa evitando qualquer barulho e, finalmente, do seu interior emergia uma colher cheia de leite em pó que era solenemente levada à boca. Os farelinhos grudavam no céu da boca. E o sabor lentamente ia se espalhando.

23/07/2014

Os índios

Reprodução da pintura 
de Maximilian Philip – séc. XIX
No final da Rua Costa Gama havia o Barcelar. Era um armazém no estilo antigo. Tinha de tudo um pouco. Querosene Jacaré, farinha, arroz, feijão, uma mesa de mini snooker e uma tevê no alto. Acho que aquela foi a primeira tevê que assisti. Era final dos anos 60 ou começo dos anos 70, não lembro bem. No ringue dois lutadores fantasiados se agarravam de maneira intrigante no meio de rabiscos e chuviscos em branco e preto. Davam golpes improváveis. Um era do bem, outro do mal. Os homens, enquanto bebericavam uma mistura de cachaça com bíter ou coisa que o valha, denunciavam aos berros a deslealdade do maldoso mascarado. Era lutinha de mentira. Uma encenação. Mas, havia quem levasse tudo aquilo a sério. Do alto dos meus nove ou dez anos não acreditava naquilo tudo. O melhor era o intervalo comercial: “Seu Cabral ia navegando/quando alguém logo foi gritando: Terra à vista/Foi descoberto o Brasil/A turma gritava: bem vindo seu Cabral...”

09/07/2014

A pescaria

O fedor de podre era muito forte na vila. Nos dias de vento, então, era quase insuportável. Chegava a arder o nariz. Vinha do matadouro. Era assim que o pessoal chamava o frigorífico, que abastecia a cidade com carne bovina. Os moradores da vila, famílias pobres com muitas bocas a alimentar, ali o que mais adquiriam era alguma carne de segunda com muita gordura, coalheiras, tripas, fígados e rins. Diziam que o cheiro vinha do sangue e dos restos dos animais mortos.
Atrás do fétido matadouro, no entanto, havia um vasto mundo inexplorado. Os olhos da molecada brilhavam pensando em conquistar aquele território. Um belo campo com açudes de águas cristalinas. Diziam que ali havia peixes graúdos às toneladas.
E foi para este lugar que saímos. Eu o Sérgio, meu irmão, nos aventuramos numa pescaria de final de tarde de primavera. Ao passar pela cerca que separava os dois mundos, fomos alertados por um funcionário do matadouro: muito cuidado com os bois brabos que estão no fundo da área! Ficamos apreensivos, mas não havia como abortar a missão. Os caniços estavam prontos e as minhocas aguardavam numa velha lata de leite ninho, previdentemente cobertas por um punhado de areia úmida.

O banquete

Lá vou eu de novo contar histórias do século passado. Mais precisamente dos anos 70. Não sei precisar o ano. Mas, acho que era 1974. Tinha onze anos de idade. Estudava numa escola particular da cidade, o Colégio Conceição. Vindo de uma família muito pobre, não tinha dinheiro para a mensalidade. Na realidade, nem para o material obrigatório tinha. Foi graças a uma bolsa de estudos concedida pelo Deputado Romildo Bolzan que acabei por ali. Não havia como negar que era um intruso naquele ninho. Com exceção de dois ou três bolsistas, todos os demais colegas faziam parte das mais tradicionais famílias da cidade.
Mesmo que os colegas fossem extremamente gentis, não nego que sentia na pele as diferenças causadas pelo abismo econômico que nos separava. O desnível aparecia especialmente na hora do lanche. Tão logo soava o sinal de intervalo, meus colegas partiam como carros de corrida em direção ao barzinho da Tia Ana. Ali se fartavam com prensados acompanhados de Pepsi (a Coca não mandava ainda neste chão). Em regra, eu e mais um e outro, ficávamos na sala de aula mexendo nos cadernos e livros, como se alunos aplicados fôssemos, disfarçando uma falta de grana que impedia de matar a fome naquele instante. Vez por outra minha previdente mãe forçava que levasse na pasta uma banana ou um pedaço de pão caseiro com margarina. Confesso que tinha vergonha quando chegava a hora do recreio e me obrigava a abrir a bolsa e de lá tirar aquelas iguarias tão diferentes das dos meus colegas. Coisa de guri!

02/07/2014

Não pare de sonhar

A placa diz PARE. Colocada num cruzamento de duas vias no interior de Maquiné, o sinal de trânsito recebe um acréscimo. Alguém, com alma de vândalo poeta, grafou em letras pretas: “não pare de sonhar”. Não obstante o flagrante dano ao patrimônio público, o alerta ou desabafo de um desconhecido pode ser um conselho extremamente válido nos dias de hoje.
Enquanto a cidade descansa: a menina sonha. No dia seguinte encontrará aquele que a fará feliz. Será por acaso. Caminhando num dia chuvoso, feio, baterá de frente com seu guarda-chuva no rapaz. Quase o derruba na calçada molhada. Ele sorrirá como um príncipe. Ela, estabanada, não conseguirá falar. Não sabe se dá atenção ao guarda-chuva que caiu, ao seu celular que se estatelou no chão ou ao rapaz. Murmurará um desculpe-me que não sairá de sua boca. Ele continuará a sorrir. E depois seguirá seu caminho. A menina, por sua vez, lamentará não ter falado, não ter explicado, não ter trocado o número de telefone. No fundo, sonha que o verá de novo.

28/06/2014

Cheiro de maçã verde (crônica editada)

“Quando eu era criança o cheiro de maçã verde era tão forte que tomava conta de toda a casa”, disse a jovem trabalhadora, lembrando, em seguida, que as maçãs de hoje não têm o mesmo cheiro das de então. Certamente não têm, disse, me intrometendo na conversa que mantinham os colegas de trabalho. Disse mais, abusando da atenção que me davam naqueles breves instantes, enquanto escolhia batatas, pimentões e cenouras: as coisas no passado não tinham só mais cheiro, tinham sabor e textura diferentes. E não foram só as coisas que mudaram. Mudamos nós.

24/06/2014

Era vidro e se quebrou

Era um garoto que não conhecia os Beatles e nem imaginava que o mundo ouvisse, nem visse as caras e bocas de Mick Jaeger e dos Rolling Stones. Acordava no domingo com o rádio sintonizado na Farroupilha. Seu pai adorava Teixeirinha Amanhece Cantando. O popular cantor gaúcho e sua até então inseparável companheira Meri Teresinha anunciavam seus shows pelo Estado, liam as cartinhas enviadas pelos fãs das mais distantes bibocas do interior gaudério e reproduziam suas inspiradas canções.

20/06/2014

A culpa é da mãe

Vivi na vila durante muito tempo. Era pequeno. Fazia parte das famílias dos sem. Sem dinheiro, sem emprego decente, sem futuro. Lá era comum as vizinhas desafetas abrirem a boca e escancarar ao mundo as suas diferenças. O mulherio não economizava nos elogios. Vez por outra e o pau pegava. Entre puxões de cabelos, unhadas, gritos e pontapés as bocas liberavam os impropérios mais cabeludos que se conhece. Os casos de traições, de supostos assédios e de possíveis facilitações eram resolvidos sumariamente. Não chegavam até o Judiciário. As lides eram compostas da forma mais primitiva que se conhece, sem direito a recursos e protelações.
O palavrão existe. Não dá pra dizer que o palavrão não faz parte do dia a dia. Uma cortada no trânsito será seguido, invariavelmente, de um fdp. É um instinto natural. Uma coisa comum. Banal até. No futebol, a ofensa faz parte do espetáculo. Em muitos casos é deprimente. Mas é fato consumado. É consenso que chamar juiz de ladrão é lícito num campo de futebol. Isto é aceito até entre os homens mais sensatos e educados. Ninguém vai exigir provas concretas e nem dará direito de ampla defesa ao árbitro. Ocorre que, neste caso, ao chamá-lo de ladrão não está se dizendo que ele construiu um patrimônio a partir dos seus erros de arbitragem. Nem mesmo se insinua que ele, ao final da partida receberá um chumaço de dólares ou euros. Não. É um xingamento, um ato de descarrego. Certo? Errado? Cada um faz o seu julgamento e tire as conclusões cabíveis ao seu desenvolvimento intelectual e moral.

13/06/2014

Lupicínio Rodrigues, 100 anos

Este ano marca um século do nascimento de Lupicínio Rodrigues. Compositor gaúcho, natural de Porto Alegre, veio ao mundo no dia 16 de setembro de 1914. Foi autor de obras antológicas como Nervos de Aço, Vingança, Se acaso você chegasse, Ela disse-me assim e tantas outras canções gravadas por um sem número de intérpretes brasileiros.  Como cantava preferencialmente a dor de um amor perdido, foi apelidado de cantor da dor de cotovelo. 
Aqui no RS uma parcela significativa dos desportistas tem na ponta da língua seus versos. Gremista, Lupi compôs o Hino do Grêmio, em 1953. Segundo dizem os versos "até a pé nós iremos" se referem a uma greve nos transportes coletivos, dificultando o acesso dos torcedores ao estádio gremista.  
O compositor morreu com 59 anos, em 27 de agosto de 1974.





12/06/2014

A inexistência

A ideia é instigante, mesmo que possa servir para zombarias. Uma análise mais apurada, no entanto, permitirá que se admita como possível algo impensável num primeiro momento. Falo de uma das tantas teorias que existem por aí e que procuram explicar o funcionamento do mundo e o andamento das coisas por aqui. Talvez tenha lido em algum lugar quando procurava algo sobre a existência. Na minha cabeça ficou sendo a teoria da inexistência. Confesso que, apesar de consultar os meios existentes, não mais a encontrei. Apesar disso, a considero uma ideia interessante. Vale a pena perder alguns minutos para pensar sobre ela.

05/06/2014

Os degredados

Seu Amadeu é um homem vivido. Já morou na Alemanha durante décadas. Já viveu no Brasil durante alguns anos. Fala quatro idiomas. Vive na Europa. Admira o Brasil. Diz que é o país mais belo do mundo. Seu Amadeu não entende o Brasil. Não sabe como os brasileiros falam tão mal do seu próprio país. Como desdenham do seu país. Não entende como os brasileiros desprezam com tanta facilidade o chão em que vivem. Ele não é um privilegiado: o brasileiro não entende o Brasil.
Este é um fenômeno que parece ter nascido com o próprio país. O Brasil já existia quando foi invadido pelos colonizadores. Aqui já havia gente que aproveitava a sua maneira as potencialidades. Desfrutava das matas, dos rios cristalinos, do mar gelado do Sul, das águas quentes do Norte e do Nordeste. Gente que se perdia na mata infindável correndo dos sacis e do curupira.

27/05/2014

O amor de Inês

Inês não desejava um reino. Não queria ser uma rainha. Vivia na corte, é verdade. Era dama de companhia da D. Constança, uma princesa doente. Inês era jovem e bela, era loira e tinha os olhos verdes. Nas suas veias corriam sangue nobre galego. Porém, por ser filha ilegítima, era tida como uma plebeia qualquer. A morte de D. Constança mudará sua vida. Inês sairá de sua posição de subalterna e conquistará o amor de sua vida, nada menos que o príncipe galanteador Pedro. Viúvo não resistirá aos encantos da menina. E vai amá-la com toda a sua dedicação como jamais amara alguém. E seu romance entrará para a história da Corte. Enquanto ama sua pequena Inês, não desconfia o Príncipe que seu amor um dia servirá de inspiração para versos que surgirão da pena de Camões.

25/05/2014

A pequena aldeia

Quem poderia afirmar no passado que o nosso grande mundo viraria uma pequena aldeia? 
Até o final do século passado, o tempo transitava calmamente, cerimonioso, cumprindo seu ritual sem pressa.  Morosamente ia engolindo os segundos e os minutos como quem degusta o doce preparado pela mamãe, após um almoço familiar de domingo. 
O panorama mudou drasticamente. Nos dias atuais, tudo é tão rápido e tão rasteiro. Parece até que os relógios foram contaminados pela pressa dos fast-foods. Ao invés de saborear, o tempo vai consumindo sem medo de indigestão os dias, as semanas e os meses. 
Contribuiu para esta mudança significativa o aperfeiçoamento das comunicações e uma melhoria extraordinária nos meios de transporte, que ficaram mais rápidos e mais baratos, reduzindo as distâncias e possibilitando que mais pessoas cruzassem as fronteiras. Viajar deixou de ser um privilégio. Virou um costume.

20/05/2014

O navegante

Azulejo do Palácio Queluz,
Lisboa, Portugal.
A Terra é chata. É plana. Quando os limites dos mares findarem, as embarcações cairão num profundo fosso e daí jamais voltarão. E com elas se vão os homens, sua coragem, seus sonhos e seus projetos. Não adianta desespero, não adianta luta nem qualquer reação. A verdade é essa. E ponto final.
Outros diziam que quando as águas rareavam, monstros gulosos levantavam-se e abriam suas bocas enormes e, sem esforço, engoliam todas as embarcações. Adeus navegação, adeus homens, adeus vida. Enfrentar as águas rudes do mar nos tempos antigos era uma viagem sem fim. Sem glória, sem qualquer possibilidade de vitória. Era a viagem definitiva, sem qualquer possibilidade de apelação. Era quase uma pena capital. Um suicídio que só os loucos e os desequilibrados poderiam cometer. Navegar era desprezar a vida. Era correr para a morte. Era entregar a alma aos monstros e daí jamais ser resgatado.

06/05/2014

Paus e pedras

A "justiça" primitiva era imposta
 pela força 
Dia desses circulava pela internet imagens de um rapaz que foi amarrado a um poste. Segundo consta era um ladrão. Antes de ser amarrado ele foi brutalmente agredido por populares e teve parte de sua orelha arrancada. O texto esclarecia que a população havia tomado conta do rapaz e feito justiça. Centenas de comentários. Outro dia alguém postou imagens de alguém que seria um estuprador. Choveram comentários para que todos compartilhassem exaustivamente. Amigos nossos, pessoas de bom caráter, pais de família, empresários influentes, gente da melhor espécie vem curtindo estas monstruosidades.
Noutro lance da mesma história, quando era lembrada, no mês passado, a passagem do infeliz aniversário da ditadura militar no país, parece que houve certo acirramento de ânimos. A saudade do coturno e do fuzil parece que mexeu com a cabeça dos amigos. Alguns deles, justificando a necessidade de que os bandidos realmente paguem pelo que fazem, chegaram a pedir a pena de morte ou a institucionalização de trabalhos forçados ou coisa que o valha.

01/05/2014

A eternidade

Qual o maior desafio que nos aguarda? Para muitos, acometidos por enfermidades, talvez seja vencer o dia de hoje, avançar no dia seguinte, ganhando outros e outros dias melhores. Para outros tantos, conseguir aquele emprego sonhado há muito, projetado há tempos, mas que teima em não chegar, gerando sentimentos de angústias e de incertezas. Alguns poderão lançar seus sonhos lá para frente, quando poderão, enfim, ser felizes.
A verdade é que é da natureza humana esta expectativa pelo que vem pela frente. Quanto mais jovem, mais intensos são os sonhos, maiores os desafios. Felizmente, pois quanto mais novo o indivíduo maiores são as energias possíveis de serem canalizadas na busca da satisfação.O processo não é exclusivo dos homens. Entre os animais, mesmo os de grande porte, o desafio do dia seguinte é comum. Penso nisso após ver um documentário, destes que abordam aspectos curiosos da psicologia selvagem, que revelam a luta cruel dos animais em seu meio na conquista de territórios, de fêmeas e do respeito entre os seus semelhantes. É o projeto de vida dos conquistadores.

25/04/2014

A falência do homem e de suas leis

O momento é de desencanto. São tantas notícias negativas, tanta crueldade, tanta selvageria tomando conta do noticiário que não há como se manter isento a tudo isso. Muito embora as notícias sejam frequentes aqui no nosso chão, sabemos que os excessos são cometidos em todo o mundo, causando a impressão de que a humanidade vem sendo assaltada por uma horda que nada teme. O gênero humano está em cheque. A sociedade, que se pretende civilizada, vez por outra é colhida por um bombardeio de acontecimentos repugnantes e, até certo ponto, inexplicáveis à luz do conhecimento teórico que vamos acumulando ao longo dos tempos.
Até onde chegará o ser humano? Qual o limite da perversão do homem? O que fazer diante de fatos que atentam frontalmente ao pensamento de que o homem é um ser que tende a se aperfeiçoar?

16/04/2014

O sumiço das palavras

Vinil O Fino da Fossa, volume 2
Ouvia no rádio uma música da Bossa Nova. Lembrei que o movimento, muito embora tenha sumido há algumas décadas, deixou um legado importante no panorama musical mundial. O jeito sereno e limpo, sem a necessidade de que um vozeirão se impusesse sobre a música, nasceu aqui no Brasil. Mais especificamente tendo como cenário as belezas do Rio de Janeiro, então Capital da República. Começou lá pelo final dos anos 50, dentro de um panorama de euforia e de valorização da brasilidade. Espalhou-se pelo mundo, agregando valores da música norte-americana como o jazz.
Com isso, lancei-me no exercício de lembrar de coisas que apareceram, fizeram parte da história das pessoas e depois sumiram. Não é bem o caso da Bossa Nova que continua ainda fazendo muito sucesso no meio artístico nos EUA, na Europa e no Japão. Pensando bem, o termo em si é que talvez tenha ficado no passado. Quantos destes meninos que atravessam as cidades de skate, que caminham pelo centro e pelos bairros carregando suas mochilas nas costas, com seus bonés cuidadosamente relaxados em suas cabeças, com seus fones inevitavelmente tapando seus ouvidos, sabem o que é bossa nova?

09/04/2014

Fala, Serius!

Serius é um deus esquecido. Não adianta procurar na mitologia porque lá ele não está. Segundo o célebre estudioso Neutralis, que conhece os bastidores romanos, gregos, africanos e outros menos cotados, de fio a pavio, Serius foi banido por Júpiter para sempre. O que ele fez para desagradar Júpiter ninguém sabe e ninguém jamais saberá. Como para sempre não existe, consta que neste exato momento Serius encontra-se reencarnado como um cidadão comum, desprovido de qualquer poder, no meio de nosso querido e amado Brasil.
Apesar de ter perdido seus poderes majestosos, Serius mantém-se como um ser retilíneo, circunspecto, pensador e, por consequência, pouco dado à galhofa e às farofagens que marcam nossa vida cotidiana. Ele tem um defeito: em princípio acredita no que os outros falam. Como dizem os mais descolados, Serius não tem jogo de cintura. Mas, não é um ingênuo. Serius tem como princípio dar crédito às teses alheias e, depois, no recolhimento noturno, enquanto se delicia com uma providencial taça de vinho tinto, com o vagar que convém, se entrega à racionalização das coisas.

07/04/2014

Era frustrada

A cidade pacífica onde os moradores deixavam os carros abertos, onde os muros eram meramente decorativos e as pessoas sentavam na calçada para compartilhar um mate, é coisa do passado. São imagens antigas como aquelas velhas fotos que vão perdendo as cores e o brilho. A passagem do tempo tem sido cruel com os costumes provincianos. O que se vê hoje, em qualquer cidadezinha interiorana é o crescimento cada vez mais intenso no uso dos aparatos de segurança. Cercas, muros, câmeras, seguranças particulares. Adeus conversa de vizinhos sobre a cerquinha de madeira.
Aquilo que era realidade nos grandes centros há décadas, agora faz parte do dia a dia das médias e pequenas cidades brasileiras. Até nos interiores do interior, a preocupação com a segurança tem crescido sobremaneira.

28/03/2014

As opiniões

arte (extrasm.com.br)
Opinar é bom. É necessário. É fundamental, especialmente no processo democrático. Opinar sempre, independentemente do assunto torna-se cansativo. Perde a graça. Causa incômodo.
Nos dias de hoje, vive-se o império da manifestação. Nas redes sociais, então, não há limites. Compartilhe algo e chove manifestações questionando quais seriam as tuas intenções, criticando por isso e por aquilo. Se alguma ação do governo local é curtida, em segundos os guerrilheiros do outro lado crivam de comentários negativos. Ressalte qualquer aspecto da vida nacional e os críticos de plantão vão derrubar seus barris de ódio ao PT, à Dilma, ao Tarso e a qualquer um que possa ser criticado, mesmo que não tenha nada a ver com a história.
Está ocorrendo na internet aquilo que nós gaúchos estamos carecas de conhecer: a regionalização. Se alguém comenta uma vitória de seu time, algo banal, comum, corriqueiro e, muitas vezes despretensioso, acaba mexendo com uma galera radical que não sabe levar na esportiva. Alguns mostram os dentes ameaçadoramente, destilando ódio por todos os poros, babando pelos cantos da boca como os lobos enfurecidos. Homofobia, racismo, xingamentos diversos, expressões chulas, tudo sem muita medida, coisas desnecessárias poluindo aquilo que deveria ser uma ferramenta de diversão, de entretenimento, um reles passatempo.

11/03/2014

A borboleta

Uma borboleta surgiu no meio da cidade grande. Talvez tenha cruzado por um milhão de pessoas que a ignoraram. Uma delas, no entanto, deixou seus afazeres e dedicou parte do seu tempo a seguir o voo solitário. Disfarçadamente fez que não viu um conhecido. Não desejava perder de vista a pequena intrusa. Nem queria ser confundido com um louco, um debiloide qualquer que no meio da tarde quente anda por aí, irresponsavelmente, correndo atrás de borboletas pela rua. Isto, convenhamos, seria um atentado à reputação de qualquer um.
As desventuras do velho cronista seguindo uma simplória borboleta foi tema de uma crônica de jornal, de autoria do insuspeito Rubem Braga. Os leitores, com certa ansiedade, acompanharam durante três dias o surgimento, a trajetória e o sumiço da borboleta, que se perdeu das vistas de seu acompanhante sem deixar qualquer sinal, misturando-se aos prédios, árvores, carros e ônibus.

06/03/2014

As viúvas do General

Há alguns amigos que não perdem tempo.  Estão conectados com os anos de chumbo. Apavorados com a roubalheira, que ganha ampla divulgação pela imprensa, contrariados diante do resultado dos julgamentos dos corruptos e indignados pela fixação do regime de cumprimento da pena e por tantos outros capítulos que se seguem vagarosamente como as novelas das nove da noite, gritam por dureza, por penas mais fortes. Na realidade, o que desejam é uma resposta mais dura e que atinjam preferencialmente todos aqueles que não prestam: os outros.
No rabo deste foguete aparece uma foto de um antigo ditador de farda, fazendo previsões nada positivas sobre o futuro da nação. Requentaram até General no Facebook. E, ainda por cima, com cara de sério. Em síntese: querem uma nova ditadura para resolver o problema da sacanagem que campeia pelo país afora. Santa Ingenuidade, Batman!

26/02/2014

As lendas

Conta a lenda que, no ano de 490 a.C, soldados gregos marchavam até a planície de Marathónas para lutar contra o exército persa. O comandante grego notou, porém, que seu exército era diminuto e se continuasse marchando seria facilmente derrotado pelos adversários.
Sabiamente, estacionou sua tropa e escolheu o soldado mais veloz de todos (Pheidippedes) para que corresse os 40 km que os separavam de Atenas. Lá deveria arregimentar mais homens para se juntar ao exército. E assim foi feito.
Em pouquíssimo tempo, o soldado corredor retornou marchando com mais 10 mil homens. Com as fileiras encorpadas, os gregos venceram a batalha. Satisfeito, o comandante deu nova ordem a Pheidippedes (que deve ter pensado naquele momento: “o homem não larga do meu pé!”). Deveria retornar os 40 quilômetros e informar a todo o povo que os gregos haviam vencido. Obediente como cabe a um soldado, mesmo enfrentando a fadiga da guerra, da falta de sono, de alimento, voltou até a cidade. Ao chegar, extenuado ao extremo, juntou o pouco de forças que lhe restavam e pode somente dizer uma palavra, antes de cair morto: “vencemos”.

13/02/2014

Telejornais

Enquanto os pingos de chuva sepultam o calor intenso que incomodava a todos, dedico alguns minutos ao telejornal. Me ocorre que, diante de tudo o que o locutor apresenta, estou vivendo uma realidade particular. Ou melhor, quase todos estamos vivendo realidades particulares.
E vejo que estou muito longe de entender o que vem ocorrendo no nosso país. Nem me refiro ao mundo porque seria pretensão demasiada para quem se confessa um incompetente para entender a realidade de nossa querida pátria.
Não é falsa humildade (em princípio este sentimento não é muito comum entre os cronistas - todos eles tão senhores de si). Não é falsidade não. Confesso minha total ignorância diante destas rusgas que tomam conta das ruas, onde meninos e meninas jogam coquetéis incandescentes contra soldados, destroem veículos particulares, apedrejam ônibus (muitas vezes com mulheres, crianças e velhos no seu interior), lançam pedras e paus nas vidraças de lojas, escarafuncham no interior dos comércios levando o que não os pertence.

O fim do futuro

Crescemos pensando no futuro. Projetamos coisas para os dias que virão. Trabalhamos hoje com o olhar voltado para a aposentadoria no dia de amanhã. Se possível, guardamos um pouquinho na poupança para uma eventualidade qualquer. Previdência sempre foi uma expressão na moda. Até hoje.
Os dias de hoje, no entanto, revelam-se muito diferentes dos de ontem. As gerações que recém botaram os pés neste chão encontraram outros tempos. Outras normas, outros recursos, outras vivências. Não basta o projeto futuro. Importa o hoje. O prazer de agora. O futuro não está em pauta. Ninguém precisa de estabilidade. Precisa, isto sim, ostentar um hoje brilhante e mutante. Instável, mas prazeroso. A estabilidade não apresenta novidades. A rotina cansa.

29/01/2014

Os 40 anos do Homem de Seis Milhões de Dólares



O ano de 2014 marca os 40 anos de lançamento (nos EUA) da série Cyborg- O Homem de Seis Milhões de Dólares. Estrelado pelo ator Lee Majors, a série televisiva foi inspirada no livro "Cyborg" de Martin Caidin. Na série, o astronauta Steve Austin sofreu um acidente em um vôo experimental de uma nave da NASA. Para trazê-lo de volta a vida, o cientista Oscar Goldman financiou uma operação que substituiu as partes avariadas de seu corpo por partes biônicas, gerando uma criatura mais rápida e mais forte.
A série estreou no Brasil em 1976, na extinta Tevê Tupi. Depois integrou a grade da Bandeirantes e mais tarde, nos anos 80, da Globo.
A série teve boa audiência. Na terceira temporada, Steve Austin ganhou uma parceira também biônica: Jaime Sommers, interpretada pela atriz Lindsay Wagner.
Vez por outra surgem informações de que a série terá remake. Porém, até o momento nenhuma iniciativa neste sentido foi tomada.

Veja a abertura no vídeo abaixo.



Saiba mais:

27/01/2014

Mínimas coisas

Minha atenta professora de Português alertava: “jamais comece uma redação pelo título”. O título é o detalhe final. Pois bem, via de regra me vejo contrariando esta norma, sem grandes preocupações. Ao iniciar a feitura de uma crônica, frequentemente mando para o espaço a regra  ditada pela  zelosa mestra,  iniciando  justamente por onde não deveria, pelo título. Um pequeno detalhe. Uma coisa mínima. Quase insignificante.
Aliás, se pensarmos bem, não é impossível concluir que a vida cotidiana até poderia ser considerada uma sequência de fatos poucos interessantes. Um amontoado de coisas comuns com poucas pitadas de sal e de açúcar. Pelo menos a vida dos simples mortais como nós, estes privilegiados seres que trabalham para pagar as contas, para garantir algum conforto e as satisfações possíveis conforme o orçamento de cada um. Vivemos sem grandes feitos, sem heroísmos, sem grandes holofotes.

10/01/2014

Um funk aos antepassados

Fac-símile de pintura rupestre
A moça caminha lentamente. Leva em uma das mãos um par de chinelos. O tio joga bola com o sobrinho. Apesar da imensa barriga, que o limita em alguns movimentos, mostra que um dia teve alguma intimidade com a pelota. Alguns argentinos caminham, fumam e falam alto. A água, gelada e clara, encosta na areia banca e quente. Dois salva-vidas remanejam as bandeiras de área perigosa, apitando para que os meninos saiam das proximidades.
Na subida do morro, uma placa indica que a partir de agora os visitantes conhecerão as marcas deixadas pelos antigos moradores da ilha. Não se sabe ao certo se eram evocações às divindades, algum agrado aos deuses, um pedido de, ou, ainda, uma mensagem deixada para as futuras gerações. Certo, porém, é que as pedras do Sítio Arqueológico da Praia do Santinho, em Ingleses- SC ainda hoje guardam os desenhos de símbolos feitos por homens que ali viveram há mais de sete mil anos atrás.

02/01/2014

Versos tristes

A tristeza, a solidão, a angústia e o abandono são temas de belas músicas. O sofrimento é um ângulo dos mais utilizados pelos compositores, que preferem contrariar a máxima de que todos gostam de um final feliz, como no cinema e nos romances. Nas canções o final nem sempre é de reconciliação, de encontro e de felicidade.
Roberto e Erasmo Carlos, cuja parceria vem desde os anos 60, talvez tenham cunhado os versos mais tristes que a MPB conheceu, na canção As Flores do Jardim da Nossa Casa. Lançada em 1969, a música aborda um final de romance dos mais depressivos. Seu ritmo lento e enfadonho vai envolvendo o ouvinte em ondas de total desilusão diante da vida. “As nuvens brancas se escureceram. E o nosso céu azul se transformou. O vento carregou todas as flores. E em nós a tempestade desabou”. Isso num tempo em que os ventos da Jovem Guarda ainda espalhavam certa leveza e graça.