18/12/2019

Sei que nada sei


Sentado na calçada em frente de casa, embaixo de uma árvore antiga e de saúde mediana, escondendo-se do sol que rachava naquela hora, lembrou que o pai do seu pai tinha resposta para tudo. Era decidido o velho. Não deixava assertiva sem uma resposta. Seu pai, do mesmo jeito, cresceu tendo respostas. Parecia uma marca familiar. Todos tinham muitas certezas e raras dúvidas.
Eis que, buscando lá no fundo da caixinha das memórias, se viu ainda pequeno imitando o avô e o pai. Queria ter respostas para tudo o que causava estranheza no pequeno mundo recém percebido pelos seus olhos ainda tão jovens.

05/12/2019

Os Mundos

Idade da Pedra- Pintura – Mural Lacaux

Quando estávamos nas cavernas, o mundo era pequeno. A bem da verdade, era o mundo grande lá fora, mas, os animais que tomavam conta do planeta eram maiores e mais ferozes. Convinha manter-se perto do esconderijo. E o que os olhos não enxergavam era como se não existisse. E os olhos pouco viam.
A segurança vinha em primeiro lugar. Era questão de vida ou morte. Os descuidados eram punidos. E ficar por aí explorando os arredores era coisa para poucos. Assim, o grande mundo se apequenava. Os donos eram outros. Os limites eram o tamanho dos dentes, as garras e a intensidade da fome.

06/11/2019

Os generalistas e os especialistas


Os seres humanos cultivam múltiplos talentos e aptidões. Todo o mundo é bom em alguma coisa. Muitos carregam habilidades diversas em maior ou menor grau. Exímio jogador de futebol bem pode ter fluência em matemática. Ora, quem disse que um atleta profissional tem, necessariamente, que ser bom só no domínio da pelota? Preconceito arraigado este de que quem é bom de bola não dispõe de outros talentos. O médico dedicado à exaustão na lida com enfermidades, curas e medicamentos bem que pode dominar técnicas artísticas como a pintura, a escultura ou outra dessas coisas que caem bem como um passatempo.
Os animais, por sua vez, são especialistas. Quem não sabe que o macaco é o rei das árvores? Grandes, médios ou pequenos, os símios dominam a arte do equilíbrio e do salto, transformando as alturas em seu chão. São, ainda, os reis da arte do riso, de zoação e da brincadeira. São os palhaços do reino animal.

A Sabedoria Primitiva

 Os humanos e os macacos têm muito em comum. Lá nos anos 70 alguns cientistas chegavam a afirmar que os fatores genéticos, a partir dos estudos do DNA dos humanos e dos macacos, coincidiam em 99%. A informação foi um estrondo. Afinal, o número demonstrava que pouca coisa diferenciava as espécias. No entanto, outros estudos foram realizados nas décadas seguintes com equipamentos mais precisos, utilizando-se outros métodos de análise e os resultados foram bem diferentes. Um abismo abriu-se entre os homens e os símios. Este patamar de 99% escorregou para módicos 70%. Um salto e tanto. De qualquer modo, ainda assim registra-se uma grande semelhança entre as espécies.
Se os humanos levam vantagem em inúmeros quesitos, como no uso de linguagem mais rica, estruturada e detalhada, que permite perceber a objetividade e a subjetividade, na fabricação de coisas complexas, na criação de sistemas que viabilizam a vida em sociedade, entre outros, há um que outro detalhe onde os símios batem um bolão.

30/10/2019

Do encantamento à seriedade


Simplicidade- Há certo encantamento quando a infantilidade ainda está presente. O tempo passa e a magia vai sumindo aos poucos. Em regra, os anos acumulados vão progressivamente modificando os hábitos. Os sabores da maturidade nem são mais os mesmos da meninice. Outras tarefas, outras preocupações, outros desafios. Compromissos vão se acumulando e, com isso, as coisas que mais davam satisfação na áurea fase infantil vão sendo arquivadas virando, com o tempo, apenas lembranças.
O jogo despretensioso, a brincadeira do recreio escolar que um dia entreteve, o gosto inalcançável do arroz com leite preparado com esmero pela mãe ou por aquela tia especial, que tinha a boa mão para o fogão, o riso fácil, as coisas simples e, muitas vezes, sem sentido, apesar de prazerosas, vão sumindo aos poucos. Na realidade, ninguém se dá conta de que as coisas vão mudando. Simplesmente vão. Vão embora sem deixar muitas pistas. Quando se vê já não fazem mais parte do cenário simples e leve da vida.

23/10/2019

A Comunicação Não Violenta


As guerras vivenciadas pela humanidade não nasceram tão somente da ação firme dos braços dos guerreiros. Mesmo que o resultado visível sempre tenha sido seja a imposição de sofrimento ao outro, antes disso acontecer houve uma série de atos preparatórios até que fossem empunhadas as espadas, as lanças e os canhões e outras armas letais.  

Os sangrentos combates foram gerados inicialmente a partir do pensamento de alguém. Um líder, um guru, um general ou mesmo um louco. Um pesadelo, uma noite mal dormida, um sentimento de insegurança, de medo ou até mesmo de superioridade talvez fossem motivos suficientes para impulsionar os jogos de guerra. Na linha de frente, alguns dos guerreiros antigos bem se achavam dignos representantes de seus deuses e tinham a obrigação de eliminar os deuses que protegiam os outros.  Como se sabe, os deuses antigos adoravam uma contenda. Antes de ferir e aniquilar o inimigo ou entregar-se à morte com dignidade, alguém interpretou os sinais e foi levado a concluir que a guerra era o melhor remédio para mal que se apresentava.

17/10/2019

Água mole em pedra dura


Os ditados populares não são exclusivamente uma mania nacional. O grande escritor Luís da Câmara Cascudo já dizia que “os ditados populares sempre estiveram presentes ao longo de toda a História da humanidade”. Esta tendência a transmitir uma mensagem reta, certeira e, por vezes, até engraçada se espalha pelo mundo todo. Cada país tem lá suas sentenças que se transmitem de avô para filho para neto e assim vai indefinidamente. Pode-se dizer que o ditado popular, adágio ou provérbio é um precursor do meme. Porém, tem sua origem em tempos desconhecidos e se propaga basicamente na oralidade.

03/10/2019

Os Homens e as Máquinas


Máquinas – Dia desses navegando despretensiosamente fiquei atraído por um curso virtual. Curiosidades daquelas que surgem e somem. No entanto, contrariando a regra, levado pelo impulso, cliquei no banner do anúncio. Informei meu e-mail para receber informações e mais alguns dados de identificação. Segundos depois, recebo uma ligação já se referindo ao interesse manifestado. Com um ou dois cliques fui transformado em um cliente em potencial. Do outro lado da linha, chegava a informação de que o preço anunciado na internet sofria ali naquele instante uma redução de 30%. Para seduzir ainda mais, o valor, com desconto, era parcelado extensivamente no cartão de crédito em prestações muito suaves etc etc etc. Não tinha como ficar de fora. “Rápidos no gatilho, pensei”.

18/09/2019

Meu pai, Chico e Caetano


Meu pai era bom de conta. Dava-se um número vezes 7548. Segundos depois, pimba! Podia recorrer à máquina de calcular para conferir: não errava uma. Era iletrado. Chegou ao terceiro ou quarto livro, se muito. Porém, era dado às rimas. Versos de trova, às vezes saíam de sua boca. Nos anos 70, eu era pequeno ainda, a repressão ainda era forte. Certa vez, meu pai inventou de escrever uns versos ironizando o poder local, o da igreja e o de muitas outras estruturas. Era um pasquim, segundo disse. Leu em voz alta na sala. Falava de um pastor que embolsava mensalmente uma polpuda quantia vinda dos dízimos dos crentes, das tramoias políticas da pequena comunidade e de outras instâncias. Era tudo rimadinho. Coisa linda de se ouvir. A crítica era ácida, mas tinha algum humor.
Minha mãe morria de medo. “Queima isso é perigoso. Se te denunciam, Deus do Céu!”. Ele ria e dizia que ia numa gráfica para imprimir tantos exemplares quanto pudesse e distribuiria pela cidade. Nunca fez isso. Tinha-se muito medo.

06/09/2019

Brincadeira tem hora


O avanço tecnológico influencia o dia a dia das pessoas. Disso não restam dúvidas. O mundo de hoje é outro. Muito diferente do mundo dos nossos avós e dos nossos pais. Diferente também do mundo vivido por qualquer pessoa com mais de 35 anos de idade. A infância, a adolescência, a juventude. Tudo tem sido aprimorado com as ferramentas da época.
Sempre foi assim. Nossos avós quando crianças brincavam com o que tinham por perto. Em regra o requinte não imperava. Brinquedos eram caros e raros. Coisa de rico. De morador da cidade. Assim, qualquer pedaço de madeira, qualquer forquilha, qualquer pedaço de corda ou resto de alguma coisa virava um brinquedo. Valia mais a criatividade do que qualquer outra coisa. Isso quando brincavam! Nas zonas rurais iam para a roça com tenra idade. Cresciam no meio da plantação, mexendo com bois, vacas, porcos e ovelhas. Era o que se apresentava no momento.

02/09/2019

Amazônia em chamas: um dano irreparável à saúde do planeta

Andrea Borghetti - Antropóloga e Consultora em Antropologia e Meio Ambiente
Publicado originalmente no Suplemento Mundo das Ideias, no Jornal Bons Ventos, agosto/2019

Os acontecimentos na Amazônia assustam. Um dano irreparável à saúde do Planeta. Os políticos, instituições governamentais (ou não), os movimentos sociais se posicionam. E começa o velho jogo de “empurra-empurra”, um querendo culpabilizar o outro. Essa tática de autopromoção (ou denegrir a imagem do outro) às custas de grandes catástrofes é muito antiga. Já devia estar defasada. Em vez de olharem para o desastre com os olhos espirituais, continuam apenas na superfície rasa do mundo da ignorância.

01/09/2019

Entre nuvens e rochas: A vida se configura em um arcabouço de crenças e razão


Fabiano de Souza Marques
Publicado originalmente no Suplemento Mundo das Ideias, do Jornal Bons Bentos, agosto/2019

Ano de 1983. Noite iluminada pela lua cheia. Boa para caminhar na estrada que se alongava entre matos e árvores distantes. Colocavam os pés na estrada de chão batido algumas pessoas. Caminhavam por essa estrada um menino com mais ou menos dez anos de idade e três amigos que eram moradores fixos daquele lugar. Para o menino, aquele era um lugar encantado. Caminhavam rápido, pois já se passava das 10 horas. Era noite e lugar de criança é em casa aquelas horas: os mais velhos diziam para as crianças naquela época. A estrada de chão batido levava até a casa lá em cima do monte, onde moravam seus avós. Era uma estrada única que fazia volta em um morro, onde o “Galo cantava cedo’. Caracterizava-se por ter nela algumas pedras de rolagem (pedras de rio). Naquela noite quase não tinha vento. A Oeste do lugarejo fica um morro oponente.

30/08/2019

O Medo da Arte

Um filme, uma música, uma pintura, uma obra de arte qualquer vai além da câmera, das luzes, dos enquadramentos, da edição, da partitura, do arranjo, do ritmo, ou da tela, dos pincéis e da moldura. O expectador assiste a um filme não como se residisse ali alguma falsidade, alguma interpretação. A história existe por si só. Ela é viva. Ficção científica, comédia, drama. Não importa: há verdade, dor, riso, sofrimento e tudo o quanto os personagens revelam nos diálogos, nos atos e nos gestos.

21/08/2019

Uma voz e um violão


Uma voz e um violão. Assim lembrava dela. Os cabelos eram cacheados. Longos. Jeito de menina. Moleca. “Olha a lua mansa se derramar (me leva amor)/ao luar descansa meu caminhar (amor)/meu olhar em festa se fez feliz (me leva amor)/lembrando a seresta que um dia eu fiz(por onde for quero ser seu par)”. Assim cantou uma noite numa das aulas de literatura. Andanças, de Paulinho Tapajós, Danilo Caymmi e Edmundo Souto, imortalizada por Beth Carvalho, que conheci num desses tantos trabalhos de grupo que se apresentavam na sala de aula.
Fazia tempos que não a via. Mentira: na verdade, a enxergava com frequência, mas sempre nas redes sociais, o que, convenhamos, às vezes é quase o mesmo que não ver. Enfim, encontrei minha querida colega de faculdade. “Trinta anos então”, pensei. Ela nem só pensou como disse. Magda pediu um café coado. A água quente passando pelo pequeno saquinho de tecido caindo aos poucos na xícara desperta uma certa magia. O cheiro de um só café enche o ambiente pequeno e acolhedor. Eu pedi uma água mineral. Com gás. O máximo da magia que consegui foi o som do gás fugindo quando a tampa foi desenroscada. Pouca coisa.

16/08/2019

O Certo e o Errado


As expressões certo e errado carregam uma aura de objetividade raramente encontrada em outros termos. Pode-se dizer com quase certeza que todas as pessoas sabem exatamente o que é certo e o que é errado. Ou, pelo menos, acham que sabem. No dia a dia, o senso de julgamento leva as pessoas a definirem exaustivamente todas as situações para os escaninhos do certo e do errado. Acostumados estamos a analisar, a sentenciar, a decidir sobre as condutas humanas. Porém, olhando-se com atenção a paisagem que nos cerca e o andar da carroça, nota-se que entre saber o que é certo e o que é errado e fazer aquilo que convém vai uma distância abissal.
Como tudo na vida tem explicação, tenta-se, de algum modo, encontrar uma resposta para este enigma. O certo nasceu na língua latina como certus”, determinando aquilo que é seguro, determinado e garantido. Ou seja, não há muito espaço para variações. Como dirira o poeta “o certo é o certo”. O termo errado também tem como origem o latim. Vem de “erratus” e está relacionado a situações de falhas, imperfeições, desajustes, enganos e inadequações.

09/08/2019

O Fim dos Rituais


Quando sua moto vinha em direção à minha casa disparava um sinal. Os cachorros se assanhavam com chuva ou com sol. Corriam para a frente e latiam anunciando a chegada de notícias novinhas em folha. O jornal era arremessado apressadamente pelo entregador. Pegava o exemplar que, nos dias de chuva, vinha estrategicamente colocado dentro de um saquinho plástico. Depois, era tomar um café folhando o diário de trás para a frente. Primeiro o esporte e suas minúcias por vezes desinteressantes, depois as coisas mais sérias como a política, a economia, o caderno de cultura e a geral.
Era um ritual. Uma folheada no jornal e um gole de café. Uma passagem de olhos rapidamente para descobrir os temas mais importantes e outro gole. No fim, a xícara se esvaziava e o jornal ainda tinha conteúdo para ser consumido. Hora de renovar. Mais uma dose.

02/08/2019

Vencer o tempo: essa é a questão?


Do Suplemento Mundo das Ideias
Por Fabiano de Souza Marques*

Não há tempo mais para nada! No meu tempo era melhor! Corra! Você não pode perder tempo! Tempo é dinheiro! Perdemos a chance. Não dá mais tempo. O tempo urge, então corra! O que está ocorrendo com o tempo? Qual é a necessidade que temos de preencher o tempo? Por que falamos isso?
Vivemos num momento em que o tempo anda acelerado? Mas como assim, o tempo está acelerado? Estamos correndo mais do que nossos antepassados? E nossos filhos correrão mais e mais rápido para vencer o tempo? Podemos dizer que tempo escorre pelas nossas mãos? Percebemos as relações humanas cada vez mais efêmeras.
Na era primitiva a jornada humana se dava na relação com tempo ligado às questões de sobrevivência. Elas aconteciam por observação de elementos naturais como o Sol e as Estrelas, pela vivência em cavernas, pelas caçadas, pelas lutas entre as tribos, pelas conquistas de outros territórios entre outras situações.

25/07/2019

Breve olhar sobre o fanatismo

Ilustração: Bruno Reis
Por Jerri Almeida*

O fanatismo é um problema humano, potencializado pelo poder das narrativas, sejam elas de caráter religioso, ideológico ou político. Para o sociólogo francês Edgar Morin, há uma boa dose de loucura no homem. A loucura não conduziu a espécie humana à extinção. Contudo, quanta destruição de culturas, de sabedoria, de obras de arte! Em 2015, um vídeo produzido pelos militantes do Estado Islâmico chocou o mundo. Utilizando tratores e explosivos, destruíram na cidade de Palmira, Síria, o templo de Baal-Shamin, um patrimônio histórico da humanidade construído por volta do século II a. C, dedicado à divindade Baal, também chamado Beelshamên. Palmira, a cidade que foi parte do Império Romano até o ano de 273, era parada obrigatória para os comerciantes que faziam a famosa Rota da Seda que interligava o comércio entre Europa, Ásia e China.

21/07/2019

Envelhecimento Precoce


Escrevo uma crônica por semana para publicação no Jornal Bons Ventos. Nos dias de hoje, velozes como nunca, os assuntos são derrubados a cada minuto. O que era importante deixa de ser num já. Sempre tem algo novo no pedaço. No caso do Brasil, então, nem se fala. Mas, apesar disso, continuamos na luta, escrevendo vez por outra sobre o que vem a ser o assunto atual.

Envelhecimento – Faz alguns dias virou febre nas redes sociais um aplicativo que deixa a pessoa mais velha. Foi uma inundação. De um dia para o outro todo o mundo envelheceu. Alguns amigos meus ficaram irreconhecíveis. Outros até que mantiveram traços de um rosto conhecido. Foi divertido para alguns. Experiência traumatizante para outros que preferiram nem postar sua imagem jogando sua velha cara na lixeira. Pouco tempo depois matérias jornalísticas informavam que o aplicativo, na realidade, visava capturar os dados do internauta e enviá-los à Rússia para alguma operação que sabe-se lá a que se destina. Os velhinhos caíram no golpe. Mas, mesmo assim foi divertido.

11/07/2019

O Bicho Homem


O gênero humano é um bicho complexo. Muito mais complexo do que se imagina. Isto porque, em regra desconhece de onde vem e quais são os seus limites. Além disso, apresenta múltiplas funções, carrega talentos ocultos e milhões de possibilidades de desenvolvimento ao longo da sua caminhada. Ele pensa, fala, ouve, age, reage, interage, planeja, dissimula. Dá voltas sobre os outros e sobre si mesmo. Enfim, o humano não é nada previsível. Menos previsível e, portanto, mais autêntico, é o indivíduo quando não está sendo observado. Quando suas ações ocorrem em liberdade plena aí se revela o verdadeiro ser.

08/07/2019

Os áureos tempos da Marshmallow


Em 2013, por ocasião dos 60 anos do GAO- Grêmio Atlético Osoriense participei de alguns trabalhos de resgate da história do clube. Um vídeo foi editado e um caderno no Jornal Bons Ventos. Na oportunidade, abordei a importância do clube no atendimento a alguns dos anseios dos jovens daquela época: entretenimento, festa e engajamento.
Eram outros tempos, outras preocupações, outra forma de encarar  a vida.Segue a matéria que nasceu de uma entrevista com um dos idealizadores da boate Marshmallow, Neimar Pacheco.



O verbete marshmallow é apresentado na Wikipedia como “um confeito que, em sua forma moderna, consiste de açúcar ou xarope de milho, clara de ovo batido, gelatina previamente amolecida em água, goma arábica e flavorizantes, batidos até tomarem uma consistência esponjosa”.
Na década de 80 não havia Wikipedia. Em Osório, no entanto, o verbete era por demais conhecido. Era sinônimo de festa, de juventude. Era sinônimo de GAO.
Seu idealizador, Neimar Pacheco, guarda na memória todos os ingredientes que levaram à sua criação. “Não havia na cidade ponto de encontro para os jovens. Fazíamos reunião dançante na garagem da minha casa e juntava muita gente”, relembra, destacando que, quando seu pai Vilmar Pacheco assumiu a presidência do clube, sentiu que dali poderia surgir alternativa de entretenimento para aquele grupo de amigos. 
Em 1981, o grupo se reuniu na casa do presidente. Surgiu a ideia de ampliar aquelas reuniões dançantes num espaço maior. O GAO aparecia como o local ideal. Neimar lembra que tudo foi acontecendo ao acaso. “Tivemos que partir para a improvisação. Não havia som profissional, não havia DJ. Foi tudo sendo construído conforme a necessidade”.

04/07/2019

O Ponto de Vista


Quando ouvimos a expressão ponto de vista, em regra, pensamos logo em opinião. Popularmente assim é. Para o senso comum, ponto de vista, opinião e parecer vem a ser tudo a mesmíssima coisa. Porém, se estas frutas receberem algum aperto darão origem a sucos distintos. O ponto de vista é uma opinião mais fundamentada, é um parente próximo do parecer. Já o parecer carrega no seu íntimo algum cuidado técnico, algum conhecimento prévio e resulta sempre em alguma responsabilidade posterior.
Um palestrante, um expositor, um comunicador, por exemplo, quando desejar entregar para a plateia uma mensagem carregada de alguma credibilidade usará em seu discurso menos opinião e mais ponto de vista. Eu acho, então, está descartado. É o fim da várzea. O enterro da narrativa. O eu acho é quase um acidente: “Estava ali na rua, olhei para a direita sem muita pretensão e achei tal coisa”. Tive um professor que detestava o “eu acho”. “Não achas nada, filho!”, dizia de vez em quando.

30/06/2019

O Triste Retrocesso da Gentileza

Por Magda Altafini

Gentileza é a qualidade do que é gentildo que é amável. Gentileza é uma delicadeza praticada por algumas pessoas, é uma forma de atenção, de cuidados, que torna os relacionamentos mais humanos, mais afetivos e mais solidários. É um degrau acima da educação propriamente dita. A Gentileza eleva o sujeito a um nível especial de humanidade, amor e de desenvolvimento espiritual. 
 José Datrino, o Profeta Gentileza é conhecido pela sua solidariedade com o povo do Gran Circus Norte-Americano que sofreu um imenso incêndio em 1961, onde morreram mais de 500 pessoas, a maioria crianças; famoso pelas suas 56 pilastras do Viaduto do Gasômetro no Rio de janeiro, chamando a atenção da população sobre o mal-estar da civilização e da necessidade urgente de mudanças na nossa sociedade e pela sua participação anônima na Eco-92, onde se colocava estrategicamente no lugar onde passavam os representantes dos povos, incentivando-os a viverem e a aplicarem a gentileza em todo o planeta e com todos os seres.

Aquilo que une, também afasta, e muito...


Por Marcelo Reis, advogado, professor, coordenador do Curso de Direito da Unicnec - Osório.
Em uma palestra sobre cybebullying em uma escola um menino de cerca de oito anos me relatou o seguinte: “quando minha mãe ganhou um celular novo, ela não saía do celular. Eu falava pra ela, “mãe, mãe, mãe”. Eu queria atenção e ela não dava. Aí eu falei pra ela: “o dia que eu tiver um celular, também não vou te dar atenção. Hoje minha mãe me chama e eu não respondo, fico de fone de ouvido e ela grita comigo”.

Liberdade de imprensa sob ameaça no Brasil

Por Gabriela Prestes (jornalista)

Desde que o novo governo assumiu o comando do país em janeiro deste ano, infelizmente, vários episódios contra a liberdade de imprensa vem trazendo prejuízos para a nossa democracia, ao acesso livre às informações e deixando o trabalho jornalístico cada vez mais tenso e difícil. Nesta última semana, presenciamos mais três formas indiretas de ataque à liberdade de imprensa. Dois jornalistas e um comentarista de grandes veículos de comunicação do país foram afastados e ameaçados nas suas funções de comunicadores.
No mais recente caso, Paulo Henrique Amorim, depois de 13 anos, foi afastado da função de apresentador do Domingo Espetacular da Rede Record de TV. O jornalista é um crítico do atual governo e usa as suas redes sociais para fazer as suas análises políticas. Antes dele, a apresentadora do SBT, Raquel Sheherazade, jornalista, foi alvo do ataque de um dos principais patrocinadores do canal, Luciano Hang, proprietário de uma rede de lojas espalhada pelo país. Ele pediu que o SBT demitisse a jornalista pelas críticas feitas por ela nas suas redes sociais contra o governo Bolsonaro.

27/06/2019

A Realidade Paralela


Um pensador francês do século XIX, Lèon Denis, disse que o pensamento é a própria voz do espírito. A conclusão que se chega, depois de algumas páginas, é a de que a realidade é aquilo que se vivencia. Ou seja, a própria pessoa a partir do que pensa vai criando sua experiência existencial. A psicanálise lida com esta questão, mesmo que de outra perspectiva, a partir de Lacan e sua conceituação de real, do imaginário e do simbólico.
Os avanços tecnológicos têm proporcionado uma mudança significativa na percepção da realidade. O pesquisador e tecnólogo americano Aviv Ovadyam tem se debruçado sobre os efeitos das mentiras virtuais espalhadas com a ajuda da tecnologia. Em recente matéria do site El País, alerta que é possível chegarmos a um ponto onde a mentira vai se agigantando de tal forma que as pessoas vão perdendo a noção do que é verdade e o que é falso. Contribuem para isso as estratégias de uso de robôs para disseminação de ideias dando a impressão de que aquilo realmente tem alguma importância. Assim, criam-se realidades a partir de falsidades.

20/06/2019

Questão de Tempo



Não restam dúvidas de que os ciclos duram menos nos dias de hoje. Sinal dos tempos: tudo, nos dias que se seguem, movimenta-se num ritmo mais acelerado. Tudo é muito rápido. Alguns dizem que a percepção do tempo vai mudando conforme o número de tarefas e o envolvimento que se tem. Como estamos todos - querendo ou não-, conectados, alguns quase escravizados a aplicativos de mensagem, nem se nota que os minutos correm como um atleta queniano na maratona. E assim apressados seguem-se as horas, os dias e as semanas.
Uma notícia, uma imagem, um meme, uma postagem prosaica, uma bomba ou uma bombinha com ímpeto atravessam o mundo em segundos. Num passado muito recente não era assim. A vida era mais lenta. As coisas demoravam mais. As novidades envelheciam até chegar nos cantões mais distantes.

11/06/2019

O Método da Desinformação


Boa parte dos meus amigos e conhecidos tem optado por garantir uma certa distância das redes sociais. Eventualmente postam uma ou outra coisinha para não cair no esquecimento total neste mundo chamado apropriadamente de virtual. Fenômeno decantado como a expressão mais vívida da democracia, não é menos verdade que as ferramentas virtuais, como o Facebook, Twitter e outros da mesma corrente, às vezes, se prestam mais a escancarar o alto grau de ignorância e truculência dos nossos tempos do que a tarefa primordial que é conectar as pessoas.
Por óbvio que é não é culpa do meio, mas de quem o utiliza. A bem da verdade, é lícito que se declare que esse uso equivocado do processo de comunicação não é uma característica do nosso povo. Não é exclusivamente retrato de nosso atraso, de nosso atavismo, de nossa falta de cultura e de traquejo social. A falta de etiqueta, de compromisso com a verdade é mundial. Claro, isso não absolve quem usa este meio para atacar, para difundir o ódio, para reafirmar os preconceitos contra grupos sociais ou defender ideias políticas ou políticos notadamente ignorantes ou mal-intencionados.

03/06/2019

Quero-quero, a mula sem cabeça e outros bichos


Aqui perto há um terreno baldio na esquina. Outro grande logo ali. Por aqui há também algumas áreas grandes com gramado e bem arborizadas. Ainda que esteja chovendo um pouco, os pássaros são insistentes. Pelo pouco que conheço, noto que há sabiás, pardais e quero-queros ocupando o mesmo território. Não são os pingos da chuva que os colocam a descansar. Na hora em que escrevo um verdadeiro alarido de sons vai tomando conta do ambiente. Parece que cada pássaro quer ser ouvido mais longe. Se estão dialogando falam línguas distintas. Como cantam com decisão estes pequenos.
Contam os mais entendidos sobre o costume dos pássaros que um deles, o quero-quero, coloca-se a cantar longe do ninho para afastar os invasores e garantir a segurança dos filhotes. Serzinho inteligente, faz um alarido com se o ninho estivesse por ali prestes a ser invadido. Dá rasantes, canta desesperadamente demonstrando sua ira e sua determinação. Às vezes, conta com a solidariedade de um ou outro que se junta no intuito de atacar com mais insistência e efetividade o ameaçador. É conhecida a sua ferocidade, especialmente pelo esporão que apresenta na ponta das asas. Acuado, torna-se um gigante, apesar de medir algo em torno de 37 centímetros e pesar insignificantes 280 gramas.
Por ser um defensor intransigente de seu território, o quero-quero foi adotado como símbolo do Rio Grande.

23/05/2019

Os boatos, as fofocas e as bizarrices


Nos papos de comadre, ou de compadre, “sabe qual é a última?” era a senha para abrir o leque da conversa e, assim, deliberar sobre questões que diziam respeito à vida da mulher alheia ou das pessoas que transitavam pelo pedaço. “Não vi, mas me contaram” de vez em quando aparecia no meio da confabulação. Era como se um salvo conduto. Uma desculpa para a falta de exatidão e, mesmo, para os eventuais desvios e exageros que a notícia primitiva poderia conter. Não havia, ainda, naqueles tempos, esse fenômeno da rede social. Assim, as notícias da comunidade eram repassadas de boca a boca. Em regra, os fatos iam ganhando interpretações mais ou menos maliciosas, detalhes eram acrescidos conforme a disposição dos comunicantes e o fato, muitas vezes, era mero arremedo da sua versão final.

17/05/2019

O Reino da Mixórdia


"...só queriam um pouco mais de justiça e hoje enxergam que assinaram um cheque em branco e que a conta será muito mais salgada do que a anunciada".

O Brasil já vivenciou alguns episódios de mal-estar e constrangimento no passado. Na história recente, a posse de José Sarney como presidente é um desses fatos. Para os mais jovens, é claro, faz-se necessária uma explicação. Tancredo, que vem a ser tio-avô de Aécio Neves, era um político mineiro que concorreu à presidência numa eleição indireta, onde só votavam os congressistas. Naqueles tempos, o povo era alijado de votar diretamente. Este direito de escolher o presidente cabia aos deputados e senadores que, em regra, referendavam o general de plantão escolhido pelo presidente general ou pelo partido do tal militar.Sei que este papo histórico é um tanto chato. Insistir nesta toada de explicar tudo direitinho parece ser daqueles erros imperdoáveis a um cronista. Continuando assim e metade dos leitores vai jogar o jornal para o lado ou seguirá adiante fazendo coisas bem mais interessantes. Então: corte na história e vamos em frente. O congresso elegeu Tancredo tendo como vice José Sarney, um aliado do regime militar, escritor casual e, talvez por carteiraço, membro da Academia Brasileira de Letras, com a significativa obra Marimbondos de Fogo. Pois, a ironia do destino venceu de 7 a 0, tal qual a Alemanha fez há algum tempo. Tancredo ganhou. Mas, não assumiu. Morreu antes. O fato gerou uma comoção nacional. Mílton Nascimento e seu Coração de Estudante embalaram os atos fúnebres. A impressão era de que toda a esperança do povo estava sendo enterrada junto. Sarney, que não venceria, acabou presidente.

09/05/2019

Intrigas palacianas


“Os piores inimigos são os que aplaudem sempre.”
Tácito, historiador romano.

Boa parte da história romana nos chega pela pena de Tácito. Sensível, estiloso, atento, o escritor esculpia a história misturando à prosa um pouco de poesia. Descrevia com presteza e atenção o cenário do poder. Naqueles tempos, como nos dias atuais, os bastidores decidiam. As tramas familiares, com assassinatos providenciais para limpar o campo do processo sucessório, as intrigas políticas, com as falsas acusações sobre os opositores que geravam falsos julgamentos com penas verdadeiras, presenteavam o reino com governantes ilegítimos. Chegava-se ao poder através do sangue e da articulação política. A adaga, a espada e a forca eram argumentos políticos dos mais utilizados.

02/05/2019

Ler, escrever e fazer contas

Sala de aula antiga

Meu avô era um homem rude. Viveu num tempo em que conforto existia somente para os ricos. Iletrado, consumiu a vida nas lides mais insalubres que se tinha na época. Enfrentava o frio e o calor na pesca, na lavoura, cuidando de uma ou outra criação. Eram dias difíceis. Tinha umas terrinhas. Mas, terra naquela época nem valor tinha. Um eito dava para trocar por uma junta de boi, por um cavalo magro, por uma carroça ou uma carreta.
As escolas eram distantes. Os mais aplicados subiam no lombo de um matungo e viajavam por entre matos seguindo trilhas e caminhos precários, passando por sangas e riachos. Nos dias de intempérie ir a aula estava fora de cogitação. Estudar era um luxo. Cresciam conhecendo poucas letras, quando muito as que completavam o próprio nome, e alguns números. Operações mais complexas ficavam para os mais letrados.

26/04/2019

A Santa e o General


Sucedi Luiz Henrique Benfica na produção do programa Olho Vivo, da Rádio Osório. Era a maior audiência da emissora. Na realidade, continua até hoje sendo um referencial no radiojornalismo da região. Por ali o litoral norte se comunicava. Osório, Capão da Canoa, Tramandaí, Palmares do Sul transitavam pelas ondas da rádio. Num tempo em que só havia telefone fixo o trabalho era penoso. As entrevistas eram agendadas no dia anterior. O chiado na linha telefônica por vezes inviabilizava o bate papo. Pedro Farias, diretor da rádio, apresentava o programa.
O grande desafio era conseguir entrevistados para o sábado pela manhã. As prefeituras encontravam-se fechadas, as câmaras de vereadores também. Naqueles tempos os sábados eram mais preguiçosos. As autoridades, que normalmente eram ouvidas durante a semana, descansavam naquele dia. O esforço era grande para encaixar alguém que tivesse um bom papo para preencher os espaços que se tornavam cada vez maiores. Às vezes a vítima escolhida demonstrava pouca intimidade com o microfone e a entrevista minguava. Era um desespero pegar o telefone e ligar para deus e o mundo, acordando uns que se negavam a falar ou, ainda, ouvindo pacientemente o telefone chamar sem resposta até final no tradicional puc puc puc .
Certa vez o Pedro saiu de férias. Pegou uns dias para descansar. Fiquei responsável pela produção e apresentação do programa a semana toda. Gastei todo o repertório. Sexta-feira, no final da tarde, bateu o desespero. Era verão e ninguém estava disponível. Fiz uma verdadeira ronda e nada.
Mas, havia sempre uma carta na manga. E a carta era ouvir um historiador para falar sobre o passado da cidade e da região. Uma entrevista leve. Convoquei o dr. Guido Muri, historiador e entusiasta pela vida osoriense, que vez por outra salvava o programa. Era conhecida sua posição contrária à mudança do nome da cidade. Acreditava que Osório deveria retornar ao antigo nome Conceição do Arroio. Criticava o ato arbitrário do governo do Estado que, em 1934, através de um decreto e sem ao menos consultar os cidadãos, abandonou a santa e homenageou o militar. Isso, segundo ele, de algum modo contribuía para que a cidade vivesse na míngua, sem crescimento econômico e progresso.


De conceição do Arroio para o Mundo

A Rádio Guaíba e o Correio do Povo mantinham no período de verão um repórter para acompanhar as notícias da Orla Gaúcha. Waldomiro de Oliveira, de voz suave, agradável e dicção limpa, era o responsável pelos boletins e textos. Pois, na segunda-feira, após a manifestação do dr, Guido Muri, o Correio publicou uma pequena e curiosa nota destacando o “movimento pela mudança de nome da cidade”. Aventou-se a possibilidade de realizar um plebiscito para ouvir a comunidade. Não sei ao certo se foi por causa disso. Porém, pouco tempo depois, Pedro voltou aos microfones e nervosamente enterrou a tese.

Crônica publicada no Caderno Mundo das Ideias, em 25.04.2019, encartado no Jornal Bons Ventos.

17/04/2019

O Complexo de Vira-Latas

Barbosa, goleiro brasileiro
 na Copa de 50

A Síndrome do Cachorro Vira Latas ou Complexo de vira Latas foi diagnosticada pelo dramaturgo brasileiro Nélson Rodrigues. Ela atinge o imaginário da população brasileira que tende a acreditar que tudo o que se produz por aqui, tudo o que se faz neste pedaço de chão não apresenta a mesma qualidade do que é feito lá, nos países mais desenvolvidos. Inconscientemente transita a informação de que há um débito permanente que persegue o povo tupiniquim. Assim, se justificam expressões como “isso é Brasil” dita, invariavelmente, depois de algum deslize cometido por autoridade do governo ou mesmo por algum cidadão imperfeito.
Obras inacabadas, políticas públicas capengas, lideranças despreparadas, carências estruturais, dificuldades a torto e a direito são algumas das coisas mais do que corriqueiras registradas por aqui com alguma insistência, o que de certo modo colaboram para que a população carregue permanentemente este sentimento de inferioridade. Paralelamente, somos acossados por ideias nem sempre precisas de que no restante do mundo as coisas funcionam com maior precisão e, assim, as pessoas são mais felizes. É comum, por exemplo, sair da boa de alguém que jamais cruzou o Rio Mampituba afirmações de que “lá nos EUA não é assim” ou “na Europa essas coisas não acontecem”. Às vezes ocorre coisa pior.

12/04/2019

O Mundo de Esopo



"Ao procurar socorro convocando os deuses é bom também fazermos nossa parte."

O que se espera de um escravo liberto, corcunda, quem sabe de pouca saúde? Muito pouco, diriam alguns. Quase nada, diriam outros.
De origem controversa, africano segundo alguns, egípcio segundo outros tantos ou, ainda, ateniense, Esopo é um destes personagens nada convencionais. Muito antes de Walt Disney construir um império a partir da voz de um camundongo, Esopo, escravo de um filósofo chamado Xanto, de Samos, colocava na boca de animais lições de moral que, depois, tornaram-se peças populares e foram se perpetuando até os dias de hoje.
Citado pelos grandes filósofos como Platão e Aristófanes, Esopo sobrevive através de suas fábulas contadas e recontadas por La Fontaine e por tantos outros em quase dois mil anos de história. A Raposa e as Uvas, O Lobo e o Cordeiro, A Cigarra e a Formiga, a Galinha dos ovos de ouro são algumas dessas fábulas que se perpetuaram ao longo dos tempos e, por isso, muitas vezes nem ao menos são creditadas ao seu autor.

08/04/2019

O patriotismo e os professores de história


Ao contrário do que se imagina, o brasileiro é um indivíduo que sabe valorizar sua pátria. E esse patriotismo sempre esteve relacionado às conquistas. Jamais com governantes. Jamais quando se sente obrigado. Nos anos 80 e 90 o Brasil era só festa e reverência à sua bandeira e ao seu hino. Ayrton Senna, Nélson Piquet, o vôlei, o basquete, a vela traziam alegria e satisfação. Nem o mais tosco deixava de se emocionar quando a bandeira subia se destacando ao lado de potências esportivas. Fórmula 1, natação, Daiane dos Santos e seu salto duplo twist carpado, o Manezinho Guga e suas tacadas certeiras, Brasil nas copas sem tantas firulas, dando gosto de ser ver. Era orgulho puro. Não havia necessidade de major, de general, de governante dizer nada. A alegria contagiante valorizava o país. As pessoas deixavam o coração falar. Sem memorandos internos, sem ordens, sem circulares.

28/03/2019

Os homens e os deuses

Monte Olimpo - representação
 de Zeus na Grécia Antiga

Os maçons chamam-no de Grande Arquiteto do Universo. Os indígenas de o Grande Espírito. Os judeus são proibidos de dizer Seu nome. O Inominado é, então, substituído pela expressão Adonai, que significa Senhor. Alá é o deus dos Árabes. Há vários títulos também atribuídos ao Criador dos mundos, do tempo e de tudo o que há, o que haverá e o que houve. Elohim, Elohá, El Shadday, Yhwh/Yahweh/Jeová são algumas das designações religiosas para o Criador poderoso e forte.
Já Xuxa Meneghel, há algumas décadas, preferia tratá-Lo como o Cara lá de Cima. Isso fez com que ela permanecesse no centro de algumas teorias conspiratórias enquanto fez sucesso. Tratar a divindade desta forma tão íntima e desleixada, tão desrespeitosa e arrogante, revelava que a loira tinha selado um pacto com o inimigo. Esse pacto, segundo as teorias mais malucas, faria com que ela fosse impedida de todas as formas de tratar a divindade como deveria. Caso ela claudicasse, perderia todo o sucesso e a dinheirama que amealhou ao longo de sua carreira exitosa. O Capeta estaria por trás de tudo isso. Só ele poderia garantir que uma artista que não sabia cantar fizesse tanto sucesso como cantora, que não sabia atuar fizesse tantos filmes.

20/03/2019

O perigoso mundo dos remédios


O pensamento até que tem alguma lógica: surge uma doença, pesquisadores analisam o caso, laboratórios investem pesado e desenvolvem um remédio. Uma revista científica publica o trabalho assinado por um escritor. O médico receita a medicação. O paciente toma. E a doença vai embora.
Assim deveria ser. Porém, nem sempre é assim que ocorre. Existem inúmeros alertas de que esta tabelinha entre doença, pesquisa, desenvolvimento de medicação e cura não se estabelece como deveria. O mais contundente deles é de Robert Whitaker, jornalista americano, escritor especializado em medicina e ciências, que publicou quatro livros sobre o tema e venceu inúmeros prêmios de jornalismo nos EUA. Segundo ele, a indústria farmacêutica investiu na relação com a psiquiatria e o que se vê hoje é uma sociedade altamente medicada e sem uma resposta positiva para os transtornos que atingem o ser humano.

14/03/2019

A caça e o caçador – A lei da selva


É da natureza dos animais a luta pela sobrevivência. Nas florestas que restam em todo o planeta, notadamente cercadas e mantidas por governos como reservas biológicas, é normal a luta encarniçada das espécies para matar a fome e prosperar até o dia seguinte. Não há dó nem piedade. Um leão ou um leopardo não viverão dramas existenciais quando avistarem um filhote de gazela disperso de sua manada e, portanto, indefeso. A graça e a beleza se vão para sempre. Restam pedaços de carnes e ossos trucidados por dentes fortes e engolidos por uma boca faminta.
Entre os homens civilizados, cultos e pretensamente conhecedores das razões da existência esta ação natural que acomete todos os seres bem que poderia ficar ao largo. Mas, vez por outra, essas guerras animalescas bem que tomam conta da realidade humana.

26/02/2019

Sobre memes e vírus


Os meios de comunicação influenciam sobremaneira na forma como as pessoas se manifestam no seu dia a dia. Há algumas décadas, a informação circulava com alguma lentidão. Houve um tempo em que os maneirismos dos programas de tevê, os bordões dos programas humorísticos, eram incorporados no vocabulário da molecada e mesmo dos adultos sem noção. “Vai pra casa, Padilha!”, “tem pai que é cego!”, “e o salário, ó!”, “o macaco tá certo!”, “Cacildis”, foram algumas dessas expressões criadas por humoristas como Jô Soares, Chico Anysio e Mussum que os meninos gostavam de usar no meio de suas conversas um tanto quanto despretensiosas. A ingenuidade ainda dava as caras.

A Visão da Montanha


O mundo é mental dizem os entendidos. Vão mais longe, dizendo que há uma mente inteligente por trás de tudo o que existe, do que existiu e do que existirá. Boa parte da civilização chama esta mente inteligente de Deus. É uma forma de reduzir a complexidade e tornar palpável o que não é. Ou, até mesmo de certa desídia e conformidade.
Porém, enganamo-nos todos quando cremos que a mente inteligente substitui a mente da gente. Nossa visão de mundo depende mais de nosso foco e da nossa lucidez do que da intervenção de terceiros.
Pode parecer muito complexo isso tudo. Mas, no fundo, reside alguma simplicidade por aqui. Senão vejamos: imaginemos agora, usando este atributo fantástico que é nosso cérebro (um mundo infinito de conexões que geram realidades distintas a cada um), que vamos subindo uma montanha. Olhando do sopé da montanha avista-se um horizonte. Ora, este horizonte vai sendo modificado cada vez que a marcha avança em direção ao topo. Chegando lá em cima, a escalada revelará um horizonte mais amplo. O panorama será muito diferente daquele observado do sopé.

11/02/2019

Roda Pião

Pião. Imagem: Wikipedia

Essas tragédias que vez por outra consomem vidas, comovem a todos e trazem dor e sofrimento, especialmente aos mais próximos, os familiares, em regra, apresentam pontos em comum: falta de fiscalização, relaxamento de entes públicos e privados, legislação frouxa que permite que empresários e dirigentes continuem jogando com a sorte e a demora excessiva no estabelecimento de culpados, gerando uma total garantia de impunidade.
Foi assim na Barragem de Mariana, será assim na de Brumadinho, talvez assim seja no Ninho do Urubu, do Flamengo, onde meninos sonhadores tiveram seus sonhos interrompidos por um desses “acidentes” que bem poderiam ter sido evitados. Tivesse a tragédia ocorrido no centro de treinamento do Cacimbinhas ou de um dos clubes do Acre, ainda assim, seria lamentável. Mais lamentável ainda quando se sabe que o Flamengo tornou-se uma potência econômica nos últimos anos, tendo faturado só com a venda de dois jogadores no ano passado (Lucas Paquetá e Vinícius Jr.) algo em torno 80 milhões de euros ou 340 milhões de Reais, aproximadamente.

As minas


Mina terrestre, artefato de guerra
Os dramas coletivos são capazes de inscrever no mapa locais até então desconhecidos da grande maioria das pessoas. Em 2015, Mariana, a primeira capital da Província de Minas Gerais, vinha vivendo um período de pouco destaque, muito embora a grande produção de minérios. A mineradora Samarco protagonizou um desastre com o rompimento de uma barragem matando 20 pessoas e causando praticamente a destruição do Rio Doce. Até o momento era o maior desastre ecológico registrado no país.
Agora foi a vez de Brumadinho, uma pacata cidade mineira de menos de 40 mil habitantes, vivenciar um drama ainda maior. Entre mortos e desaparecidos mais de 300 pessoas. A Vale, empresa que explora a mineração na área, lamentou muito o ocorrido. Suas ações na bolsa de valores caíram 20%, diz a manchete do jornal.

30/01/2019

A Terra é Plana



Vivendo e aprendendo. O Brasil na vanguarda, de novo. Agora por retomar teorias já vencidas, abandonadas. É tempo de coisas novas e, às vezes, de passar um pouco de vergonha, também. Sobre o desafio de vencer os mares e cruzar a Terra escrevi esta crônica há uns anos atrás, mais precisamente em 2014. Jamais imaginei que fosse reeditá-la. Coisas da vida. Coisas de um novo tempo que, muitas vezes, nos joga de volta à Idade Média.


O Navegante

A Terra é chata. É plana. Quando os limites dos mares findarem, as embarcações cairão num profundo fosso e daí jamais voltarão. E com elas se vão os homens, sua coragem, seus sonhos e seus projetos. Não adianta desespero, não adianta luta nem qualquer reação. A verdade é essa. E ponto final.
Outros diziam que quando as águas rareavam, monstros gulosos levantavam-se e abriam suas bocas enormes e, sem esforço, engoliam todas as embarcações. Adeus navegação, adeus homens, adeus vida. Enfrentar as águas rudes do mar nos tempos antigos era uma viagem sem fim. Sem glória, sem qualquer possibilidade de vitória. Era a viagem definitiva, sem qualquer possibilidade de apelação. Era quase uma pena capital. Um suicídio que só os loucos e os desequilibrados poderiam cometer. Navegar era desprezar a vida. Era correr para a morte. Era entregar a alma aos monstros e daí jamais ser resgatado.

25/01/2019

O Rádio


O rádio de tempos atrás era muito diferente. Por aqui, na aldeia, a programação local por muito tempo esteve baseada na música e nos apresentadores. Lá pelos anos 70, liam-se cartinhas com pedidos musicais. “Janaína da Baixada oferece a próxima página musical para seu noivo Leopoldo”. Página musical, no caso, era uma canção, uma música. A própria locução era mais solene. Alguns tratavam seus ouvintes de dileto ouvinte. Em alguns horários, as propagandas eram destinadas à dona de casa, pois o homem saia para trabalhar e o rádio entretinha a mulher, responsável pelas lides domésticas.
No interior, demorou até a interatividade migrar do papel das cartinhas e dos bilhetes para a linha telefônica. Ocorre que telefone era coisa rara, um produto muito caro suportado somente por empresas e profissionais liberais de reconhecida capacidade financeira. Com o surgimento dos orelhões, telefones públicos alimentados por fichas, a comunicação entre o rádio ouvinte e o apresentador do programa ganhou em dinamicidade. O desafio era reduzir o chiado e tornar a voz do participante um pouco mais audível.

10/01/2019

Andam dizendo por aí


Gatos caem do telhado – Os felinos são fortes, lépidos, rápidos, espertos e ágeis. Na linguagem popular, dizem que os domesticados, notadamente os gatos, contam com sete vidas. É crença antiga, é claro, despudoradamente falsa. Os bichinhos são sensíveis. Mudanças são um pesadelo para eles. E, tanto quando nós, morrem um dia independentemente de seis outras possibilidades. Outro pensamento popular é de que os gatos não se machucam na queda. Apesar da agilidade, caem do telhado. Machucam-se. O conhecimento popular construído através do achismo e da primeira impressão, em regra, encontra-se muito distante da realidade científica.

Todo o poder emana do povo – Pensamento basilar da democracia e princípio constitucional pátrio, a assertiva é uma dessas pérolas que encantam nos discursos dos políticos e enchem de orgulho quem ouve. Faz bem ao ego acreditar que realmente o poder é do povo. Mas, não é bem assim. O poder do povo está em eleger. Feito isso, babaus. O eleito, bom ou ruim, de centro, de direita ou de esquerda, arrogante ou simpático, honesto ou nem tanto, está autorizado a governar como quiser. Isto porque, os votos recebidos são uma espécie de salvo conduto. O povo vota, mas não governa. A menos que se alie e crie exércitos de defensores que têm como papel básico combater qualquer crítica, qualquer citação ou mesmo qualquer manifestação de humor nas redes sociais.

A igualdade – Todos são iguais perante a lei. É outro desses princípios tão belos quanto ineficazes. Num mundo ideal talvez fosse a grande lei. A igualdade de todos os seres abaixo da luz solar. Os budistas pensam assim. Quem conhece o templo de Três Coroas bem sabe que há plaquinhas alertando os visitantes sobre os carreirinhos das formigas. Pedem respeito à vida das formiguinhas porque elas também são seres dignos de respeito. Porém, mesmo quem se dedica a lançar olhares encantados aos corpos celestes reage com algum furor de estiver em cima de um formigueiro. Lá se vai o respeito ao ser criado pela Perfeição.

Racionalismo – O racionalismo, se levado ao extremo, é capaz de eliminar em muito o impacto das ideias. O debate próprio de quem pensa, que se estabelece após o surgimento de uma ideia, talvez tenha o poder de reduzir o impacto daquilo que aparece através da intuição. Muitos artistas, escritores, pintores, acordam na madrugada quando surge alguma mensagem intuitiva. Jogam-se sem pensar no trabalho. Nem tudo vira obra de arte, é claro. O Rolling Stone Mick Jagger disse, certa vez, que ouve algumas músicas compostas por ele mesmo e nota que a peça não veio de seu cérebro. Não sabe de onde surgiram os versos, as notas, os arranjos. Acha tudo isso muito estranho porque não encontra uma explicação para o fenômeno. Agora nem busca mais uma resposta. É isso jovem Jagger: nem tudo o que ocorre por aqui tem uma explicação racional. Ou tem?