22/10/2020

Hoje não, hoje sim

 

Era um domingo de Dia da Mães. Rubens Barrichello, piloto brasileiro de Fórmula 1, vinha com um pé que era um leque. O ano era 2002, na Áustria. A equipe era a poderosa Ferrari. Em segundo vinha Michael Schumacher, número um da equipe. Se tudo corresse como vinha até a última volta o resultado seria um só: Rubens em primeiro e Michael em segundo.

O narrador da Rede Globo estava empolgado. Mas, tinha uma pulga atrás da orelha. Cléber Machado vinha narrando num ritmo acelerado. Emocionado com a possibilidade de mais um pódio brasileiro na elite do automobilismo mundial, parecia em êxtase.

E lá vinham os dois carrinhos vermelhos para a última volta. Rubens em primeiro, Michael em segundo. A corrida estava no fim. Faltavam poucos metros para cruzar a linha de chegada. Ninguém em sã consciência imaginaria que o resultado fosse mudar. Cléber Machado homenageou a mãe do Barrichello. “Vai ter música de vitória?”. E os carrinhos deslizam na pista. E o narrador informa que a única mãe de piloto que não foi na pista ver ao vivo foi a de Barrichello. Ainda bem! Eis que o inesperado aconteceu. A equipe italiana meteu o bedelho e, através do serviço de rádio, determinou que o brasileiro tirasse o pé do acelerador e deixasse o alemão receber a bandeirada. 

Na última curva, faltando meia dúzia de metros, o alemão ultrapassou o brasileiro. “Hoje não! Hoje não!”, dizia o narrador que, surpreso teve que improvisar um “hoje, sim!”, para marcar a mutreta italiana na cara de todos. Comentaristas lamentaram destacando a atitude antidesportiva da Ferrari. “É inacreditável”, disse Machado, ressaltando que não havia nenhuma necessidade da escuderia fazer este tipo de coisa. Protestos, denúncias, lamentações. Não deu em nada. Na verdade, pensando bem, Fórmula 1 nem chega a ser esporte. É espetáculo. É show. E no mundo do espetáculo, como em muito do que nos cerca, expressões como ética e moral nem estão assim tão em voga.

Lembrei deste fato quando atualizava as notícias e li, com alguma surpresa, que o Capitão presidente desautorizava o Ministério da Saúde a adquirir vacina contra a Covid-19. Imagino a decepção daqueles que colocam suas esperanças em cima de uma vacinação em massa. Ficam com cara de Cléber Machado, diante de mais uma frustração: “Hoje não, hoje não! Hoje, sim!”. Como os governadores têm autonomia para adquirir as vacinas é provável que assim  ajam.

Olhando friamente, sem os olhos na pista e a bandeira na mão esperando uma vitória, é óbvio que a expectativa exagerada em relação a uma vacina não é algo positivo. Vê-se que os laboratórios estão numa corrida maluca. Que testes têm sido feitos e os resultados ainda não são claros. Ainda nesta semana noticiou-se que um voluntário brasileiro morreu em decorrência da vacinação com pelo produto da Oxford. Ou seja, a corrida é longa. Até a linha de chegada muita coisa pode ocorrer. O melhor que se pode fazer, ainda, é manter-se atento às recomendações das autoridades sanitárias. No mais é aguardar sem ansiedade e sem desespero.



10/09/2020

Desafiando os monstros marinhos

As grandes navegações ocorreram faz alguns séculos. O mundo era uma pequena porção. Os navegadores foram abrindo fronteiras. O mapa mundial foi acrescido de novas terras, novos rios, novas montanhas e novos mares. Marinheiros morreram de escorbuto. Demorou até se descobrir que a vitamina C contida no limão, laranja, lima e bergamotas poderia ter salvado a vida de alguns valentes navegantes que assistiram a saúde abandonando seus corpos enquanto as gengivas sangravam, a pele era acometida de pústulas e feridas, edemas nas articulações e infecções generalizadas.

Foi um esforço enorme. Doenças, tempestades, fome, dores no corpo e uma infindável incerteza acompanhava diariamente aqueles que se metiam a explorar os mares e tentar vencer os mitos criados pelo desconhecido. Monstros engoliam navios inteiros. Algumas embarcações perdiam-se depois de chegar muito próximo da borda. Vendavais desorientavam e ondas gigantescas, muitas delas provocadas por serpentes gigantescas com bocas com milhares de dentes afiados, que empurravam navios para lá e para cá. Velas eram derrubadas e, por fim, o naufrágio impiedoso levava para o fundo do mar o sonho de marujos movidos pela coragem.

Eis que agora, depois de estabelecidas certezas, não é incomum encontrar nas redes sociais gente contestando o formato do planeta e do próprio mar. A imbecilidade vem impulsionada por teorias conspiratórias que apostam na credulidade de pessoas que pouco sabem, que acreditam no poder do negacionismo como forma de criar um mundo diferente daquele que o consenso científico estabeleceu a partir de análises, descobertas, cálculos, conclusões, muito suor e alguma dose de intuição.

Então, a Terra é plana. Chega-se num ponto onde o oceano acaba. É a borda do mundo. O finzinho de tudo. Os navios chegam até ali e, caso não vençam as forças da água que formam uma senhora cachoeira, caem num vazio até então não explicado. Um penhasco nunca visto por satélites nem sondas. Mas, independentemente da ciência aeronáutica ou espacial, sabe-se que a Terra tem borda, sim. Há quem diga que pode até ser de catupiry ou de cheddar.

Cristóvão Colombo, Américo Vespúcio, Vasco da Gama, James Cook, Fernão de Magalhães e outros tantos navegadores sabiam muito bem disso. Omitiram de propósito. Talvez não fosse interessante contar a verdade naqueles tempos. Agora, com o WhatsApp e as correntes do bem que pregam a negação dos conceitos básicos e privilegiam a insanidade individual (talvez para a construção de um estado de insanidade coletiva), privilegiados descobrem a verdade. Até agora estavam mentindo. Todos mentiam. É hora de descobrir a verdade.

Talvez este tenha sido o mote para um casal de italianos se aventurarem pelo mar para chegar à borda. Queriam provar que a Terra é plana e que o mar tem um fim. Desorientados, como se vê, não foram muito longe. Tiveram que ser socorridos e trazidos de volta para a terra firme. Sorte deles. Vai que avançassem muito no oceano e acabassem por encontrar os monstros que incomodavam os seres viviam no imaginário fantástico cultivado com fé e medo na Idade Média europeia.

As serpentes atlânticas com suas bocas de fornos que lançam um calor infernal deformando os corpos dos navegantes e ensurdecendo com um mugido de quinze touros, descritas por São Brandão, aguardam aqueles que ainda hoje ousam adentrar no mar profundo. Sorte deles que foram resgatados e não precisaram enfrentar os monstros que guardam as bordas do oceano.

20/08/2020

Os guarda-sóis verdes

 Moisés Santos estava trabalhando. Talvez achasse que sua saúde estivesse em perfeitas condições. Talvez desconfiasse que não estava tão bem assim. Uma dor no peito, alguma dificuldade para respirar: nada que fosse muito sério. Afinal, estava acostumado a trabalhar, precisava do emprego (que pagava pouco) e um afastamento agora em plena pandemia talvez fosse uma catástrofe.

Moisés Santos tinha 53 anos de idade. Trabalhava como promotor de vendas. Circular pelos corredores de supermercados era sua função dando evidência às marcas que representava. Dia desses sentir-se mal.  Caiu no chão devido a um  enfarto fulminante. Ali ficou.

O supermercado providenciou um tapume improvisado. Alguns guarda-sóis verdes, ajeitou umas caixas de produto. Implementou um isolamento fake.

Enquanto o corpo de Moisés, um trabalhador, descansava, as donas de casa olhavam com interesse as verduras frescas para o almoço da família. Os caixas seguiram passando as compras e cobrando os preços marcados na tela.

Tudo funcionava como sempre. Menos Moisés. Moisés estava atrapalhando. Ficou estendido por quatro horas até o corpo ser resgatado pela perícia.

Nas redes sociais, dias depois Moisés foi lembrado. Um trabalhador a mais que morreu no local de trabalho. Um morto qualquer que, diante da repercussão, levou o nome Carrefour ao topo das citações.

A rede gigantesca veio a público e disse que mudou seu protocolo. A partir de agora, dizem, se houver morte dentro do estabelecimento haverá obrigatoriedade de fechamento da unidade.

O respeito aos trabalhadores vem sendo arquivado faz muito neste país que pouca importância tem destinado às pessoas. Moisés Santos que o diga.

17/07/2020

A ansiedade em tempos de pandemia


O infectologista, em entrevista ao programa de rádio, alerta que o descuido dos brasileiros, ansiosos por abandonar as medidas de prevenção contra o avanço inexorável do vírus, poderá ser catastrófico. Não há outra forma de evitar o contágio e o colapso no sistema de saúde senão o isolamento social. Sem concessões. De preferência fechando tudo por algumas semanas. Lembra que na Europa alguns países passaram por seis meses de fechamento. Por aqui são noventa dias.
É claro que do outro lado, com algumas razões bem compreensíveis, empresários, que temem pelos seus investimentos; produtores e capitalistas, temendo por suas fortunas e oportunidades de lucros; e mesmo trabalhadores, temerosos pela possibilidade bem plausível de perder seus empregos, seus investimentos, desejam ardentemente que as restrições sejam afrouxadas de tal forma a garantir o andamento das coisas como a economia, a produção e o emprego.

20/05/2020

Aquele Abraço

O abraço é um dos gestos afetuosos suprimidos pela pandemia de coronavírus. O costume, ao contrário do que se imagina, não vem sendo praticado desde eras antigas. Homens da caverna não se abraçavam. Se cena como esta ocorresse naqueles longínquos tempos eram durante alguma briga, algum desentendimento e não para demonstrar afeição e apreço.

06/05/2020

O Macro e o Micro


O homem é um ser inquieto, sabemos disso. Ainda bem que assim é. Não fosse e a roda ainda seria um bloco de pedra quadrado e a Terra seria plana, com oceanos que terminavam no nada. E o Criador ainda seria um ser vingativo que pune os carnavalescos cariocas com uma peste porque “zombaram” da divindade nos seus desfiles profanos. Porém, este anseio pela busca de respostas é um caminho sem fim. Quanto mais o homem avança sua pesquisa sobre a existência, mais perguntas surgem.
O universo, visto no passado como a única fronteira possível, já não contém tudo o que existe. Tornou-se pequeno aos olhos de equipamentos sofisticados e diante de cálculos matemáticos formulados por homens de mentes brilhantes e insaciavelmente curiosas. O olhar já está ultrapassando suas paredes.

29/04/2020

Eles estão chegando


A presença de vida alienígena na Terra tem sido difundida de maneira jocosa. Em regra, o cinema apresenta esta temática num só sentido: seres vindos de outros planetas invadem a Terra com o objetivo de se apossar das riquezas e exterminar a raça humana. Assim, nós seríamos os mocinhos e eles os bandidos.
A presença de outros seres por aqui é tema instigante. Porém, o ceticismo impera. Afinal, sempre é bom lembrar que nossa herança cultural, especialmente na sua face religiosa, dogmática, antiga, elege o humano como criatura privilegiada em relação ao Pai, a Deus. Mesmo que este mundão, que chamamos de universo, seja vasto, inexplorado e desconhecido, o senso comum releva os extraterrestres ao patamar do folclore e do risível.

23/04/2020

As cenas dos próximos capítulos


Falar sobre o futuro é uma armadilha. Ele é incerto. Depende do que se fez ontem e do que se está fazendo hoje. Então, não é um ser autônomo. E, além disso, é fugidio, pois quando chega já não é mais o futuro e sim o hoje. Ele é sempre o que está por vir. De uma hora para a outra vira o ontem.
Num passado mais ou menos distante, uma das técnicas usadas para garantir a audiência das novelas globais era, ao final de cada exibição, apresentar as cenas dos próximos capítulos. Eram hábeis os editores. Mostravam rápidas cenas, escondendo o essencial. Não existia ainda o spoiler, que veio a ser instituído muito depois, no entanto, havia perspicácia suficiente para garantir que o noveleiro espiasse somente o necessário para manter seu vício.

10/04/2020

Um Pequeno Exercício

Esta crônica foi publicada há dez anos. Em comemoração, resolvi editá-la e postá-la novamente.

Nosso cérebro é mesmo algo fabuloso. É o nosso poderoso arquivo. Está fechado hermeticamente dentro de nosso crânio. Classifica e guarda em compartimentos bem definidos desde as funções mais básicas, como respirar, caminhar e mastigar, até coisas mais complexas como guardar todas as senhas que fazem parte da nossa vida. Banco, cartão de crédito, internet, conta de e-mail, Facebook etc. Ou, ainda, para alguns, definir o ponto exato de cozimento do miojo.

08/04/2020

A comunicação em tempos de pandemia

Os canais de comunicação instantânea, quando usados maliciosamente, têm o poder de disseminar a falsidade. Mesmo em casos sérios como esta pandemia que atinge todo o planeta, sempre aparece gente disposta ou invigilante espalhando coisas e mais coisas que mais atrapalham do que contribuem. Desta forma, ferramentas como Facebook e WhatsApp que ligam as pessoas facilitando a comunicação, tornam-se armas nas mãos imprudentes de mentes pequenas. 

01/04/2020

Nada será como antes

    A caverna - Eis que voltamos à caverna. Fazia muito tempo que havíamos saído de lá. Escondidos permanecemos durante muito tempo. Havia feras do lado de fora. Nada melhor do que o aconchego de um lugarzinho seguro para afastar o medo e garantir a existência. Porém, nem todos preferem a segurança. Há aqueles que optam pela aventura. Claro, alguns saindo da caverna perderam a cabeça, literalmente. 

23/03/2020

O Tempo Dirá


Uma das desculpas mais frequentes está sendo levada à lona. A falta de tempo tem justificado, nos últimos tempos, a mudança significativa no modo de vida das pessoas. Corre-se daqui para lá e de lá para cá num ritmo frequentemente frenético, sem sossego. Assim, valorizam-se as atividades mais lucrativas e mais significativas. Jogar-se na rede por uns minutos, assistir a um filmezinho infantil com o filho, compartilhar e interagir com os familiares pequenos momentos tornou-se supérfluo. Afinal, falta tempo. O trabalho consome, os contatos consomem, os compromissos mais importantes consomem o tempo.

11/03/2020

O Caminho da Gratidão

Gostaria de lembrar onde li para dar o devido crédito. Mas, sinceramente, por mais que me esforce, não consigo. Assim, opto pela geração de dívidas: com o autor e com o leitor, este último por ter ficado com uma informação incompleta. O que importa é que disse esse alguém que o universo só é interessante porque eu existo. Alto lá os apressados que leram a sentença anterior como uma homenagem ao ego do cronista. Nada disso. Explico.

26/02/2020

Um Grão de Areia

Não existe nada objetivo em relação ao nosso tamanho. Não me refiro ao tamanho real do corpo físico. Isso é fácil. Basta uma fita métrica e o caso está resolvido. Que o digam os agentes funerários, hábeis em medir corpos desfalecidos com exatidão infalível. Falo de outra questão: qual o nosso tamanho, a nossa importância neste vasto mundão criado há tanto tempo e regido por algumas poucas leis conhecidas e por uma imensidão extraordinária de desconhecimento?

19/02/2020

Investindo no silêncio

Aqueles que lidam com a saúde mental (terapeutas, psicólogos, psiquiatras e estudiosos) dizem com razoável insistência que a humanidade está doente. É um fenômeno mundial. Dores no corpo e na alma como resposta à falência das expectativas, às frustrações acumuladas ao longo da existência e às demandas por uma felicidade aparente. Some-se a isso o excesso de informação e a necessidade de estar sempre conectado, sempre disponível para o novo que chega a cada segundo, sem dar descanso.
Os sábios orientais têm algumas orientações para tornar a vida das pessoas em algo mais prazeroso, menos denso e mais próspero. Curiosamente, manter segredo sobre algumas coisas é uma desses caminhos indicados. Manter os seus objetivos mais importantes em segredo evitando compartilhar inclusive com pessoas próximas, pois a energia emanada pelo outro pode criar uma rejeição, uma desarmonia, afinal, mesmo que de forma inconsciente os próprios familiares podem torcer para que a meta não seja atingida. No momento certo, festeje a conquista com todos.
Não partilhar as limitações do corpo é outra dica. O corpo é um templo sagrado e o ser deve aprender a conviver com ele sem lamentações. Além disso, o excesso de informações sobre as dores cotidianas criam ideias negativas a respeito do indivíduo. Que nunca ouviu no seio familiar “lá vem fulano com suas dores”?