22/09/2015

O Centroavante

Peito de Aço era um centroavante nato. Desses que não existem mais. Um Dadá Maravilha, um Serginho Chulapa. Era magro. Suas canelas eram finas. Não tinha panturrilhas. Apesar disso, seu corpo não vergava à ignorância dos zagueiros. Eu mesmo, um centromédio dos tempos antigos, com muita vontade e alguma inspiração, era muito mais forte do que ele. Mesmo assim cheguei a experimentar a sua força.
Jogávamos em times distintos naquela tarde.  O campo era o da Dona Guria, no Bairro Glória. Era um campo pequeno. Os times eram de três jogadores. Quatro no máximo. Era muito baixo. A grama era fofa e vivia molhada. As goleiras eram feitas de chinelos havaianas, de latas de azeite ou de camisetas. Eram goleiras móveis, o que gerava alguma discussão quando a bola arrastava a trave. Era gol ou não?  Foi por dentro ou por fora? Impossível saber. Não havia tira-teima.

20/09/2015

Bola de gude

Carregava um pote abarrotado de bolas de gude. O pote era pequeno. Mas isso não importava. Estava cheio até a boca. Azuladas, esverdeadas, leitosas. Só não havia bolão porque bolão não cabia no pote. As unhas eram sujas de terra e riscadas pelo constante atrito com a bolinha de vidro.  O polegar ostentava um calo de tanto empurrar a bolinha em direção às outras.
Certo dia, de maneira desavisada, olhei de perto minha joga preferida. E vi que dentro de sua imensidão uma nuvem se destacava. E olhando com mais cuidado notei que aquela nuvem tão pequena escondia planetas, sóis, luas, meteoros e meteoritos. E que, naqueles mundos tão distantes, meninos saiam de casa de maneira fugidia e se juntavam num terreno plano e arenoso. E traçavam no chão um círculo onde casavam suas bolitas. E riscavam uma linha alguns metros à frente. Jogavam com força calculada suas bolitas até a linha. Quem ficasse mais perto da risca teria a primazia da primeira jogada. E, às vezes, gastavam tempo enorme medindo imprecisamente os centímetros que separavam seus lances da marca. Se não houvesse acordo um árbitro era convocado para dirimir a contenda.

15/09/2015

Anotações

CINZA - O mundo às vezes é cinza. Sonegam-se as outras cores quando um menino que foge em busca de sossego, de um lugar para viver, encontra a morte no mar. Seu corpo frágil é o atestado de que o mundo é cinza. É deprimente o mundo quando alguém, fugindo em busca de paz, é perseguido, agredido e tem seu corpo queimado. O mundo é cinza quando o que separa os homens são a cor da pele, o sentimento religioso ou a conotação política. E cinza não tem tom. Não há prazer no cinza. Todo golpismo é cinza, toda a intolerância é cinza. E cinza é o tom da moda. Infelizmente. 

TEMPO- Dizem do alto de seus saberes que o tempo a tudo cura. Na realidade, o tempo não cura. A cura não é de sua natureza. Ele só avança. Deixa para trás o anteontem e o ontem. Com rara competência o tempo passa. E como passa. Avança no amanhã. Lentamente vai se afastando do que se viveu. Ele só passa. Sem medo. Sem trégua.

LATIDOS- São cinco horas da manhã. Não há vento. Não resta barulho lá fora.  O cão late. Insistentemente. A cidade dorme. Não dá ouvidos para o cão. Talvez seu latido seja uma resposta a um semelhante que se manifesta lá longe.  É madrugada e os carros estão parados. Os sons estão desligados. Vigilantes, guardas e insones não dormem. Seguram seus olhos pesados.  O cãozinho é do vizinho que dorme. E o som enche a rua. Se espalha fazendo eco. É madrugada. E o latido invade o sonho do menino que dorme. 

TORTA FRIA-  Um torta fria salgada é uma destas engenhosidades que só podem ter sido gerada por uma senhora altamente dotada de censo de improviso. Posso até vê-la abrindo a geladeira e juntando os restinhos disso e daquilo. Uma camada de pão, tomate picadinho, milho, cenoura ralada, camada de maionese, camada de pão, um resto de franguinho desfiado, mais tomate, cenoura, maionese, mais uma camada de pão e maionese para cobrir. Um ramo de salsa jogado despretensiosamente.  Está pronta a obra.  Não é que fica bom esse negócio!?

14/09/2015

O Baile

"Olha que isso aqui tá muito bom..."
De longe se notava um alvoroço. Não dava para distinguir muito bem o que era.  Os carros iam parando. O trânsito se tornava lento. Num certo momento tudo parou.
 “Queremos nossos salários. Queremos nossos salários, queremos nossos salários”, gritavam no meio da estrada interrompida os trabalhadores. Preocupados, ostentavam faixas e cartazes mais ou menos agressivos, mas todos indignados. Num deles, o governante dança alegremente como se estivesse em um salão de baile. “Olha, que isso aqui tá muito bom, isso aqui tá bom demais; olha, quem tá fora quer entrar, mas que tá dentro não sai.

02/09/2015

Façanhas

Houve um tempo em que tudo aqui era melhor que no resto do país. Nossa polícia era melhor do país. A saúde era a melhor do país.  Nossa assembleia era a melhor do país. O povo daqui era o mais politizado. O mais culto. Tudo, tudo mesmo era melhor. O gaúcho vivia repetindo isso incessantemente. E, tal qual a mentira repetida inúmeras vezes, a sentença transitou em julgado. E a doce ilusão virou verdade.