02/05/2019

Ler, escrever e fazer contas

Sala de aula antiga

Meu avô era um homem rude. Viveu num tempo em que conforto existia somente para os ricos. Iletrado, consumiu a vida nas lides mais insalubres que se tinha na época. Enfrentava o frio e o calor na pesca, na lavoura, cuidando de uma ou outra criação. Eram dias difíceis. Tinha umas terrinhas. Mas, terra naquela época nem valor tinha. Um eito dava para trocar por uma junta de boi, por um cavalo magro, por uma carroça ou uma carreta.
As escolas eram distantes. Os mais aplicados subiam no lombo de um matungo e viajavam por entre matos seguindo trilhas e caminhos precários, passando por sangas e riachos. Nos dias de intempérie ir a aula estava fora de cogitação. Estudar era um luxo. Cresciam conhecendo poucas letras, quando muito as que completavam o próprio nome, e alguns números. Operações mais complexas ficavam para os mais letrados.

Neste contexto vivencial que une o século XIX com o XX, o pensamento, como se sabe, era limitado. As comunicações eram precárias. O mundinho era o quintal de casa. As novidades chegavam na venda do seu Manoel. A ida vez por outra até a Vila, contribuía com o contato com os ventos que traziam um limitado cheiro de civilização. Naqueles tempos, as novidades andavam lentamente. Quando chegavam aos cantos mais distantes já eram velhas.
Meu avô criou os filhos para trabalhar. Estudar era desnecessário. Isso era coisa para gente da cidade. As meninas, então, nada tinham a ganhar. Tinham sim. Por certo gostariam de aprender a ler e escrever com alguma exatidão. Aí poderiam mandar cartas de amor e o problema estaria criado. Mais um problema entre tantos que apareciam gratuitamente.
Meu avô era um homem rude. Vivia num tempo em que trabalhar era a meta. Era o jeito que se tinha para carregar a vida. Uma enxada, uma picareta, uma pá, um facão, um machado, uma foice, meia dúzia de utensílios simples, baratos e arcaicos e alguma disposição para enfrentar o cansaço e as dores no corpo mantinham um homem vivo. Viver era simples.
Não posso dizer que, nestes tempos novos, onde criam-se coisas e mais coisas para facilitar a vida enterrando os utensílios arcaicos, o discurso de meu avô quanto à desnecessidade de buscar um aprimoramento educacional seja uma tese válida. Não. Ninguém em plena consciência poderá dizer que o desenvolvimento intelectual e cultural seja algo desnecessário.
Eu disse que ninguém em plena consciência pensaria algo assim nos dias de hoje. Pois não é que tem gente que creia que isso é possível. O presidente deste chão tem insistido nestas teses esdrúxulas. Achei que esse homem fosse rude. Achei que ele fosse tosco. Creio que é bem pior que isso. Já estou achando que é também muito mal intencionado. Os seus discursos quanto à necessidade de se limitar a educação a aprender a ler, escrever e fazer contas é ridículo. Se o pacote de asneiras ficasse por aí já seria um crime. Ele foi mais longe. Ainda conclamou os estrangeiros a virem fazer turismo sexual com as mulheres brasileiras, isto porque estas terras não são de gays. Não satisfeito, ainda, e pretendendo seguir sua caminhada furiosa para levar o Brasil de volta para o Século XIX anunciou a vontade de suprimir os cursos da área de Humanas. Claro que o objetivo é atingir a Filosofia e a Sociologia. É evitar que se pense. É evitar a diversidade de pensamento e ação. Ordem e progresso. Sem gays, sem pensadores, sem pessoas politizadas. Uma geração de gente que serve a um patrão. Sem leis de proteção porque estas coisas atrapalham o capital.
Não sei ao certo onde chegaremos. Mas, tenho certeza, o presidente e sua turma ainda vão causar muito estrago. Ainda vão atormentar muito nosso presente. Ainda vão comprometer boa parte de nosso futuro.
Meu avô era rude. Iletrado. Não votaria no meu avô para presidente. Não gostaria de ver suas teses vencedoras. Não gostaria de voltar ao século XIX. Porém, mesmo não gostando estamos sendo levados até lá. Enquanto isso, na Espanha e em Portugal os ventos são de que existe futuro lá na frente. Tomara que esses ventos cheguem por aqui. Tomara.

4 comentários:

  1. Oportunos comentários. Acho que temos que ser pacientes, lutando com persistência e civilidade. Mais cedo ou mais tarde eles se enforcarão com a própria corda.

    ResponderExcluir