18/09/2019

Meu pai, Chico e Caetano


Meu pai era bom de conta. Dava-se um número vezes 7548. Segundos depois, pimba! Podia recorrer à máquina de calcular para conferir: não errava uma. Era iletrado. Chegou ao terceiro ou quarto livro, se muito. Porém, era dado às rimas. Versos de trova, às vezes saíam de sua boca. Nos anos 70, eu era pequeno ainda, a repressão ainda era forte. Certa vez, meu pai inventou de escrever uns versos ironizando o poder local, o da igreja e o de muitas outras estruturas. Era um pasquim, segundo disse. Leu em voz alta na sala. Falava de um pastor que embolsava mensalmente uma polpuda quantia vinda dos dízimos dos crentes, das tramoias políticas da pequena comunidade e de outras instâncias. Era tudo rimadinho. Coisa linda de se ouvir. A crítica era ácida, mas tinha algum humor.
Minha mãe morria de medo. “Queima isso é perigoso. Se te denunciam, Deus do Céu!”. Ele ria e dizia que ia numa gráfica para imprimir tantos exemplares quanto pudesse e distribuiria pela cidade. Nunca fez isso. Tinha-se muito medo.

Mas, a censura, a polícia, o DOPS, o exército não se interessavam muito por pasquins apócrifos ou produzidos por desconhecidos de pouca representatividade. Centravam a munição nos grandes. Chico Buarque, Caetano Veloso, Gilberto Gil e até o Odair José, que, ao seu modo e na sua forma, cantava para a empregada, para a prostituta, para o desvalido, sem muita sutileza e poesia. Mas, afinal cada um faz o que dá conta.
Meu pai já saiu deste plano. Minha mãe foi antes. Depois disso, vivemos períodos onde o medo, a censura, a perseguição nem mais estavam sendo lembrados. Mas, alguma coisa está fora da rota, fora da nova ordem mundial. A nossa pátria amada é celebre em retomar estas questões que julgava-se enterradas. Dia desses, um filme sobre o Chico Buarque, que seria apresentado num festival uruguaio, foi vetado pelo nosso governo. Caetano Veloso, vez por outra sofre uma perseguição enorme dos milicianos que gravitam no entorno do governo. Livros foram censurados no Rio de Janeiro.
Os tempos mudam. Mas, pelo que se vê, as mentes ainda resistem em administrar aquilo que realmente interessa. Ficam na periferia e na picuinha. Página infeliz da nossa história, diria Chico. Para os artistas, é claro, a censura vindo de onde vem só reforça o valor da obra. Chico e Caetano, por exemplo, quando atacados pela turba aumentam sobremaneira seu capital e seu prestígio especialmente onde o pensamento é valorizado. Na Europa, o Brasil virou anedota.
Se estivesse por aqui meu pai certamente pegaria um lápis e umas folhas de caderno e escreveria alguns versos bem rimados e consistentes. Minha mãe, se aqui estivesse, ficaria com medo. Um certo clima de desajuste institucional no ar pode causar algum medo nas pessoas. Boa parte da população cala porque consente, outra cala porque tem medo ou não notou ainda que os danos causados serão sentidos ali na frente.
Por mais Chicos e Caetanos. Por menos milicianos.

* Meu pai Dorvalino Cardoso dos Reis foi domador, jóquei, trabalhador rural, gostava de um chimarrão (surpreendentemente preparado numa xícara) e de uma conversa sobre política e futebol.

2 comentários:

  1. Pior que estamos revendo estes absurdos.

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    1. Também gostaria de saber, amigo. Talvez no futuro isso tudo faça algum sentido!

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