11/07/2019

O Bicho Homem


O gênero humano é um bicho complexo. Muito mais complexo do que se imagina. Isto porque, em regra desconhece de onde vem e quais são os seus limites. Além disso, apresenta múltiplas funções, carrega talentos ocultos e milhões de possibilidades de desenvolvimento ao longo da sua caminhada. Ele pensa, fala, ouve, age, reage, interage, planeja, dissimula. Dá voltas sobre os outros e sobre si mesmo. Enfim, o humano não é nada previsível. Menos previsível e, portanto, mais autêntico, é o indivíduo quando não está sendo observado. Quando suas ações ocorrem em liberdade plena aí se revela o verdadeiro ser.

A noite era fria. Também pudera, inverno se presta bem para isso. A mesa era farta. Até um chileno apareceu por ali. O papo era sobre os homens, seus costumes, suas crenças e sobre a caminhada que se empreende aqui na Terra. Genaro, enfático como lhe é peculiar, lembrou que o professor Clóvis, aquele dos papos filosóficos que são compartilhados nas redes sociais, disse que todos os humanos são canalhas. E explicou que os indivíduos, na sua essência, buscam somente aquilo que, de algum modo, apresente alguma vantagem pessoal. Todo o mundo, mesmo que de modo quase secreto, corre atrás daquilo que vai beneficiá-lo. Claro, como a vida social exige alguma discrição, o canalha esconde-se convenientemente atrás de suas máscaras, de seus disfarces e das personas que consegue construir ao longo do caminho.
E Sócrates, que sempre aparece quando o assunto é o homem e sua necessidade de conhecer suas potencialidades e olhar seus atavismos, entrou na história. Hermes passou também por ali. “O todo é mente. O Universo é mental”, ouviu-se. E foi além: "Nada está parado, tudo se move, tudo vibra". E o mundo, que um dia se disse parado, seguiu seu fluxo e a conversa avançou. Celso, vez por outra, lançava uma certeza que logo se transformava em dúvida ou, mesmo uma dúvida que esmiuçada por aqui e por ali ganhava, enfim, ares de verdade como ademais ocorre nas conversas filosóficas e nos papos de mesa de bar, onde as sentenças definitivas tendem a desaparecer nos minutos seguintes. A conversa era estimulante. Não restaram vídeos e nem gravações. Testemunhas talvez existam. O frio, que era intenso, tornou-se ameno. E a noite ganhou ares de satisfação.
Seguindo nesta toada, já sem Sócrates, nem Hermes, nem Genaro e nem Celso, creio que não se trata de nenhum engano acreditar que o bicho homem é extremamente verdadeiro quando os olhos da vigilância não estão a segui-lo. A única manifestação segura é o pensamento. Porém, fora disso há sempre alguma chance de que algo se revele. Nos dias atuais, onde a privacidade e a segurança estão virando expressões mortas, um deslize aqui ou acolá, um discurso incontido ou uma falcatrua qualquer se vazados convenientemente podem comprometer as imagens construídas e mantidas como a aparência oficial do indivíduo para a sociedade. Isto hipoteticamente, é claro. Em regra, as mensagens trocadas pelos aplicativos estão resguardadas.
No entanto, se as conversas mais sigilosas, os históricos de ligações telefônicas, as imagens guardadas no celular, um que outro apontamento na agenda eletrônica e outros pequenos detalhes fossem vazados, com certeza dores de cabeça surgiriam aqui e acolá. Talvez negócios fossem desfeitos, sentenças anuladas, credibilidades postas a prova, relações abaladas, sociedades desmanchadas. O passado, de algum modo, poderia ser lido de outra forma. O presente, por consequência, ganharia outros contornos. Os vazamentos destroem as máscaras. Os heróis estão nus. Os súditos, os mais apaixonados, nem sempre verão que eles estão nus. Não acreditariam se conseguissem ver.

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