O
gênero humano é um bicho complexo. Muito mais complexo do que se
imagina. Isto porque, em regra desconhece de onde vem e quais são os
seus limites. Além disso, apresenta múltiplas funções, carrega
talentos ocultos e milhões de possibilidades de desenvolvimento ao
longo da sua caminhada. Ele pensa, fala, ouve, age, reage, interage,
planeja, dissimula. Dá voltas sobre os outros e sobre si mesmo.
Enfim, o humano não é nada previsível. Menos previsível e,
portanto, mais autêntico, é o indivíduo quando não está sendo
observado. Quando suas ações ocorrem em liberdade plena aí se
revela o verdadeiro ser.
A
noite era fria. Também pudera, inverno se presta bem para isso. A
mesa era farta. Até um chileno apareceu por ali. O papo era sobre os
homens, seus costumes, suas crenças e sobre a caminhada que se
empreende aqui na Terra. Genaro, enfático como lhe é peculiar,
lembrou que o professor Clóvis, aquele dos papos filosóficos que
são compartilhados nas redes sociais, disse que todos os humanos são
canalhas. E explicou que os indivíduos, na sua essência, buscam
somente aquilo que, de algum modo, apresente alguma vantagem pessoal.
Todo o mundo, mesmo que de modo quase secreto, corre atrás daquilo
que vai beneficiá-lo. Claro, como a vida social exige alguma
discrição, o canalha esconde-se convenientemente atrás de suas
máscaras, de seus disfarces e das personas que consegue construir ao
longo do caminho.
E
Sócrates, que sempre aparece quando o assunto é o homem e sua
necessidade de conhecer suas potencialidades e olhar seus atavismos,
entrou na história. Hermes passou também por ali.
“O todo é mente. O Universo é mental”,
ouviu-se. E foi além: "Nada
está parado, tudo se move, tudo vibra". E
o mundo, que um dia se disse parado, seguiu seu fluxo e a conversa
avançou. Celso, vez por outra, lançava uma certeza que logo se
transformava em dúvida ou, mesmo uma dúvida que esmiuçada por aqui
e por ali ganhava, enfim, ares de verdade como ademais ocorre nas
conversas filosóficas e nos papos de mesa de bar, onde as sentenças
definitivas tendem a desaparecer nos minutos seguintes. A conversa
era estimulante. Não restaram vídeos e nem gravações. Testemunhas
talvez existam. O frio, que era intenso, tornou-se ameno. E a noite
ganhou ares de satisfação.
Seguindo
nesta toada, já sem Sócrates, nem Hermes, nem Genaro e nem Celso,
creio que não se trata de nenhum engano acreditar que o bicho homem
é extremamente verdadeiro quando os olhos da vigilância não estão
a segui-lo. A única manifestação segura é o pensamento. Porém,
fora disso há sempre alguma chance de que algo se revele. Nos dias
atuais, onde a privacidade e a segurança estão virando expressões
mortas, um deslize aqui ou acolá, um discurso incontido ou uma
falcatrua qualquer se vazados convenientemente podem comprometer as
imagens construídas e mantidas como a aparência oficial do
indivíduo para a sociedade. Isto hipoteticamente, é claro. Em
regra, as mensagens trocadas pelos aplicativos estão resguardadas.
No
entanto, se as conversas mais sigilosas, os históricos de ligações
telefônicas, as imagens guardadas no celular, um que outro
apontamento na agenda eletrônica e outros pequenos detalhes fossem
vazados, com certeza dores de cabeça surgiriam aqui e acolá. Talvez
negócios fossem desfeitos, sentenças anuladas, credibilidades
postas a prova, relações abaladas, sociedades desmanchadas. O
passado, de algum modo, poderia ser lido de outra forma. O
presente, por consequência, ganharia outros contornos. Os vazamentos
destroem as máscaras. Os heróis estão nus. Os súditos, os mais
apaixonados, nem sempre verão que eles estão nus. Não acreditariam
se conseguissem ver.
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