23/08/2017

O Medo do Escuro

Tinha medo de escuro. Era um menino pequeno. Algumas vezes o medo era muito maior do que ele. Sua mãe vivia dizendo que o escuro era só a ausência de luz. E que a falta de luz era momentânea. Não adiantava nada. À noite, quando seguia para seu quarto, era sofrimento na certa. Se ao escuro sobreviesse vento e chuva, então o pavor tomava conta.  Se um raio inventasse de rasgar o céu e se dirigir perigosamente em direção ao chão, o pavor tomava conta do serzinho. O cobertor se movimentava em direção à cabeça. O coração saía do lugar e tentava passar pela sua boca pequena. Faltava ar embaixo das cobertas.  Depois de uma luta enorme, o cansaço vencia o medo. Lentamente, chuva, vento, trovões e raios iam ficando para trás. Os olhos fechavam e se entregavam à falta de luz.
Por mais que medo tivesse, gostava quando seu pai, que raramente tinha tempo para uma conversa, gastava alguns minutos contando histórias de fantasmas e almas penadas, de assombrações que perseguiam gente antiga que morava nas redondezas e de seres de outros mundos que cobravam contas oriundas de pactos antigos. Não havia luz no casebre.  A chama da vela insistentemente dançava para lá e para cá, seguindo a direção ditada pela lufada de vento que entrava por alguma das inúmeras frestas que havia na velha casa de madeira. A mãe, que lavava a louça numa bacia na cozinha, bem que alertava que o pai parasse de contar aquelas histórias porque as crianças não dormiriam depois.  Que nada: uma história ia se grudando na outra. E os olhos dos pequenos nem piscavam.
Surpreendentemente, nestas noites de contação de histórias o pavor não era tão intenso quanto parecia. Dormia-se bem. Talvez os monstros criados pelo medo do menino fossem mais fortes e mais assustadores do que meros fantasmas que perseguiam seus desafetos ou lobos enfurecidos que ganhavam vida no corpo de um inocente e saiam pela noite derrubando bezerros com dentadas certeiras.
Como tudo na vida passa o menino também passa. Cresce e muda. Ficam para trás os escuros, as lufadas de vento, os trovões e os relâmpagos. Nem os raios assustam mais. O coração se acalma e não quer mais sair pela boca. Já não precisa mais tapar a cabeça com o cobertor.
As ocupações são bem outras. O mundo já é dos adultos. Mudaram os medos. Deram lugar a outras coisas: expectativas e frustrações de gente grande. Carreira, futuro, família, relacionamentos, economia, política. Os fantasmas são outros. Estão por aí. Muitos não se escondem. Alguns deles marcam presença nos noticiários das tevês. Se sentir medo eles crescem. E aí ninguém dorme mais.

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2 comentários:

  1. O texto, nos remete a uma viagem nas memórias da infância e Juventude que passaram em uma velocidade imaginável para uma criança, onde coisas boas ou não ficaram nas lembranças do tempo de nossa vida.

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  2. Contar histórias a seus filhos pequenos é de extrema importância. Se não é bom narrador, compre livros e leia. Esses momentos são preciosos para a formação de todos nós. São referências para vida toda. Tudo bem apanhado neste texto, caríssimo. Muito bom.

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